Com os votos de PS, PSD, Bloco e CDS, e a abstenção do PCP, o acordo tem aprovação garantida; mas, mesmo assim, vão ouvir-se críticas
O Acordo Ortográfico, que será hoje [dia 16 de Maio de 2008] discutido e votado na Assembleia da República, continua longe de ser um tema consensual — mesmo no PS há vozes discordantes, a começar pela de Manuel Alegre. No PSD, Zita Seabra é a crítica mais activa. Não votará, invocando conflito de interesses pelo facto de ser editora, mas garante que «votaria contra» e diz mesmo esperar que «ao longo dos seis anos [de moratória para a aplicação] se ganhe juízo e o acordo não entre em vigor».
Para convencer os deputados — e o país — da necessidade de aprovar o acordo, o ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, tem dois argumentos principais: a mudança na grafia «é essencial à internacionalização da língua portuguesa»; e, seja como for, o acordo já foi ratificado pelo Parlamento em 1991 e o que se está a votar hoje é apenas um protocolo modificativo que permite que ele entre em vigor com as ratificações de apenas três países (que, com Portugal, passam a ser quatro, já que Brasil, Cabo Verde e São Tomé ratificaram) e não dos sete signatários.
Alguns deputados não precisam de ser convencidos — o PSD e o BE vão votar a favor, e o líder da bancada do CDS-PP, Diogo Feio, estava ontem ao fim do dia ainda a ouvir os seus deputados, tendo até ao momento recolhido opiniões maioritariamente favoráveis. O PCP tem uma posição diferente, «de grande reserva», explica o deputado João Oliveira, o que o levará a optar pela abstenção.
Os comunistas criticam o facto de «ao fim de 18 anos não ter havido alteração aos erros apontados ao acordo» e entendem que há uma contradição. «Se a ideia do protocolo modificativo é acelerar a entrada em vigor, parece-nos contraditório que depois exista uma moratória de seis anos», diz João Oliveira. No entanto, apesar das críticas, o partido opta pela abstenção por considerar que não é benéfico «isolar Portugal nesta questão».
O Bloco opta por uma «votação política», por achar que não faz sentido neste momento uma discussão sobre aspectos técnicos. O acordo, diz Luís Fazenda, «facilitará a aproximação dos não-falantes do português à língua», permitirá «maior facilidade no estudo do idioma» e este é um «ponto central para a promoção do português» no mundo. À volta disto tem sido feita «uma tempestade num copo de água», considera.
Na posição diametralmente oposta está Zita Seabra, para quem o acordo «vem criar problemas gravíssimos sem resolver nenhum». Ou seja, «não há nenhuma aproximação entre as diferentes formas do português» e «é confuso, porque mesmo na ortografia admite várias hipóteses». O socialista Manuel Alegre disse ao Expresso que não poderá votar a favor por uma questão de coerência com o que tem dito, e porque «há um património que temos que preservar».
Ouvido quarta-feira na comissão de Cultura, o ministro tentou tirar algum do dramatismo ao debate. Sem adiantar quando é que este passaria a ser aplicado, Pinto Ribeiro garantiu que «o Governo prosseguirá políticas de salvaguarda de uma transição sem ruturas, nomeadamente nas escolas», com a formação de professores e a introdução das novas regras. Há um prazo de seis anos para a transição, por isso o ministro fala de uma «aplicação progressiva nos jornais e documentos oficiais», a par de uma "interiorização" nos meios educativos.
Pinto Ribeiro frisou que «não há nenhuma sanção, as pessoas podem escrever como quiserem». E deu como exemplo um poema de Herberto Hélder no qual o poeta quis escrever duas vezes a palavra "bêbado" — uma vez com esta forma, e outra como "bêbedo". Dito isto, deixou um aviso: «A grafia é politicamente instrumental. Se não o fizermos [a aprovação do acordo], estamos a dar um tiro nos pés».
Nota: Este texto foi revisto pelo linguista Malaca Casteleiro segundo as regras do Acordo Ortográfico. Curiosamente, só uma palavra — assinalada a bold — foi alterada.
in "Público", 16 de Maio de 2004