Texto crítico - e sarcástico q.b. - ao critério prevalecente no Acordo Ortográfico da "fiel reprodução da fala" sobre a etimologia e a tradição da língua portuguesa, publicado pelo autor no blogue Biliotecário de Papel, do jornalista José Mário Silva, a 21 de Agosto de 2008.
O Acordo Ortográfico de 1990, o tal que aí vem, é uma medida incoerente, oportunista, irresponsável, desnecessária. Os quase 100 000 portugueses que já assinaram um protesto na Net mostram como não é fácil enganar um povo. Simplesmente, o PR [português] não deu ouvidos ao intenso clamor, e o Acordo lá passou. E agora? Choros convulsivos? Uma maciça desobediência civil? Qual! O Acordo contém, por nítida desatenção, um lado espantosamente saudável. Ora vejamos.
Até hoje, o grande critério para a ortografia do português era a etimologia. Escreve-se assim porque a forma original era esta ou aquela. Um segundo critério, menos produtivo, mas não menos eficaz, era a tradição. Escreve-se assim porque já o nosso bisavô o fazia. Estes critérios eram sacrossantos e produziram uma ortografia de desnortear os mais sisudos. Vamos ao dicionário ver onde está o 'z' em "vazar" e "extravasar", ou o 'u' em "coscuvilhar" e "burburinho". Inútil indignar-nos. A ortografia nunca perseguiu a fiel reprodução da fala. Quando calhava, óptimo. Quando não calhava, óptimo na mesma.
Mas o Acordo traz novidade, e das graúdas. Ponhamos por caso "amnistia", "amnistiar", "amnistiável". Assim dizemos e escrevemos nós. Um brasileiro diz e escreve "anistia", "anistiar", "anistiável". A leitura destas realidades foi sempre dúplice. Havia a imarcescível latinidade portuguesa, havia a natural evolução ultramarina. Altas justificações para a crueza dos factos. O mesmo valia para os nossos "subtil", "súbdito", "contactar", "intacto", etc., e para os brasílicos "sutil", "súdito", "contatar", "intato".1 Era a evolução.
O Acordo deixou-se de impressionismos. Muito pós-moderno, ele declarou tais diferenças um reflexo da prolação das elites. Ou mais chãmente: a reprodução das várias "pronúncias cultas locais".
Mas espera lá: não vinha o mirífico Acordo unificar a escrita da 'Lusofonia'? Claro. E bem tentou. Só que, no contorcionismo para uniformizar o impossível, rebentaram-lhe as costuras do outro lado. Isto é: o Brasil, cansado de ser 'evolução' dos usos portugueses, fez proclamar a igualdade das "pronúncias locais", reconhecidas a partir de agora como o critério decisivo da grafia.
Isto, senhores, é simplesmente revolucionário. A ortografia deixa de ser 'arbitrária', 'convencional', para tornar-se, sem meias tintas, o reflexo duma fala efectiva. O que abre perspectivas nunca sonhadas. Podemos agora - libertos da camisa-de-forças da etimologia e da tradição, finalmente donos de nós próprios - dar ao nosso português uma escrita adequada e pedagógica.
Não era essa a intenção? É esse o precioso resultado.
1N.E.: É de notar que o Dicionário Houaiss, dando preferência a intato, admite também a forma intacto. O Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, de Francisco Borba, prefere intacto, considerando muito pouco usada a variante intato.
in blogue "Biliotecário de Papel", 21 de Agosto de 2008