Os poderosos gostam de dizer que os outros não são «os donos» das coisas sobre as quais eles decidem. É redundante, e um bocadinho estúpido, e, precisamente por isso, funciona — pelo menos intimida. Os escritores, por exemplo, não são «os donos» da Língua — e não se vai cancelar um acordo ortográfico só pelo amor serôdio que alguns escribas dedicam a consoantes mudas e outras chinesices (por alguma razão o Prós e Contras que a RTP dedicou [no dia 14 de Abril de 2008] à magna questão do Acordo incluía o parecer de um chinês, fascinado com aquilo a que chamava (sic) «o novo língua portuguesa»).
Já tive ocasião de explicar, com larga cópia de exemplos, que nada me moveria contra o Acordo se, de facto, ele acordasse alguma coisa. Vasco Graça Moura tem esmiuçado a bacoquice do Desacordo parágrafo a parágrafo, por muitos e variados palcos, com uma clareza de água e uma paciência de santo — mas quem quer ouvir de que se trata? Chama-se-lhe nacionalista ou colonialista e está o caso arrumado, que isto é Portugal. No referido programa televisivo, tanto ele como Maria Alzira Seixo recordaram que o Acordo, em si, é que enferma de colonialismo — dado que foi cozinhado por académicos de Portugal e do Brasil, com os restantes países de língua portuguesa no papel de «majorettes» contratadas para a fotografia. E enquanto ouvia a sempre serena e generosa Guiomar de Grammont, nos dois minutos de exposição a que teve direito, lastimava que o povo português não tivesse tido direito a ouvi-la por mais meia hora, para que ela contasse como fez da tão portuguesa cidadezinha de Ouro Preto, no estado brasileiro de Minas Gerais, um ponto de encontro anual de escritores de toda a lusofonia, e como conseguiu já mobilizar-nos (designadamente, ao Jorge Salavisa e a mim mesma) para um «Letras em Lisboa» de propósitos semelhantes, cuja primeira edição decorreu há dias. Infelizmente, a RTP não enviou um só jornalista a nenhum dos espectáculos, conferências ou debates desse festival da Língua Portuguesa. O que acontece é sempre menos interessante do que aquilo que o Poder manda acontecer, ou não estivéssemos em Portugal.
É precisamente porque amo a riqueza extraordinária da Língua Portuguesa, e o que as suas variantes africanas e brasileiras lhe acrescentam (porque há tantas variantes dentro do Brasil como nos países africanos de expressão portuguesa) que, à partida, me desgosta a ideia burocrática de um acordo. Se pelo menos o Acordo servisse para unificar a aprendizagem da Língua, e assim tornar igualmente acessíveis e programáticos, para as crianças das escolas, os escritores dos vários países, poderia julgá-lo útil. Mas o Acordo prevê que se mantenham as diferenças ortográficas correspondentes à «pronúncia culta» (seja lá isso o que for) de cada país. Trocando em miúdos: as grafias manter-se-ão distintas. Mais próximas, mas suficientemente distintas para tornar impossível a criação de manuais escolares universais, dentro do mundo da língua portuguesa. Até porque as diferenças abissais não são ortográficas — mas gramaticais e semânticas. O argumento da unificação da Língua para efeitos de papeladas oficiosas internacionais não colhe, por estes mesmos motivos. E que diferença faz que um documento internacional seja escrito numa qualquer variante do português? Todos entendemos a escrita do cabo-verdiano Germano Almeida, do brasileiro Rúben da Fonseca, do moçambicano Mia Couto ou do angolano Pepetela.
Não é uma questão de percentagens de palavras alteradas, nem de «cedermos aos brasileiros». Pessoalmente, agradeço aos brasileiros o empenho que têm posto, no Brasil como nas muitas cátedras de Língua Portuguesa que têm por esse mundo fora, na divulgação do padre António Vieira e de Fernando Pessoa, de Agustina ou Lídia Jorge, bem como da atenção que dedicam aos novos escritores portugueses — que, aliás, têm sido muito mais publicados no Brasil do que os novos autores brasileiros em Portugal. Dói-me que assim seja. E começo a fazer contas, contas simples, evidentes: quanto se vai gastar em papel e impressão de livros novos por causa deste acordo? Quanto já se gastou em cargos, comissões, grupos de trabalho, salários, almoços, viagens, motoristas, para que ele se realizasse? O que tem feito a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) para além deste protocolo de acentos e tremas? Quantos gigantescos «Letras em Lisboa» (e em Cabo Verde, e em Angola, e em Moçambique, etc.) se poderiam organizar com essas verbas? Que repercussão não teriam os livros de Guiomar de Grammont, Maria Esther Maciel ou Suzana Vargas, ou os discos e livros de José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski (para só falar de alguns autores que estiveram presentes nesta primeira iniciativa de intercâmbio literário) se a RTP lhes dedicasse metade do tempo que dedicou à discussão do acento grave ou circunflexo?
Tanta conversa, tanta mordomia, tão pouca vontade de mudar o que importa. É isso o que mata a língua portuguesa, é esse o triste poder de Portugal.
texto publicado na revista Única do semanário Expressode 19 de Abril de 2008