O que encerram as palavras? - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O que encerram as palavras?
O que encerram as palavras?
As reações à linguagem neutra na Europa

« (...) Num relatório de 156 páginas, publicado em janeiro de 2020, a RAE afirma que as mudanças na língua devem ser impulsionadas pelo uso comum e não por decretos vindos de cima. (...)»

 

A última escaramuça na guerra cultural sobre a linguagem inclusiva teve lugar esta semana em França, onde o Senado votou a favor de uma proposta para proibir a utilização de termos menos marcados quanto ao género em documentos oficiais.

Les Républicains, o partido de centro-direita que está por detrás da proposta, alegou que os neologismos inclusivos como iel – uma mistura dos pronomes masculino e feminino il e elle – e os esforços mais gerais para acabar com o enraizado preconceito masculino em francês faziam parte de uma «ideologia que põe em perigo a clareza da nossa língua».

Discussões semelhantes estão a ter lugar em toda a Europa e não só, à medida que as pessoas – desde políticos a pais – debatem o papel que a língua deve desempenhar na proteção e promoção da diversidade, inclusão e representação. Nos países cujas línguas têm substantivos masculinos e femininos, a questão está a revelar-se particularmente difícil.

França

Os senadores e senadoras da oposição discordaram do resultado da votação de segunda-feira, descrevendo o texto como "retrógrado e reacionário", uma opinião partilhada pelo Alto Comissariado para a Igualdade entre Mulheres e Homens.

Para se tornar lei, o projeto terá de ser aprovado na Assembleia Nacional e não há data prevista para o debate. No entanto, há cada vez mais apelos para tornar o francês menos sexista – uma campanha que tem lugar desde os anos 80, mas que foi rejeitada pela influente Académie Française, a guardiã da língua.

O que mais irrita os ativistas é o facto de as regras gramaticais francesas fazerem prevalecer a forma masculina de um substantivo sobre a feminina. Assim, as mulheres que fazem parte de um conselho de administração de uma empresa só de mulheres são designadas por directrices [«diretoras»]; se um homem se juntar ao conselho, são designadas coletivamente por directeurs [«diretores»].

Esta mesma posição foi assumida pelo Presidente Emmanuel Macron, esta semana, quando afirmou: «Na nossa língua, o masculino atua como neutro.» (Macron, no entanto, dirige-se habitualmente aos cidadãos como «les Français et les Françaises» [«franceses e francesas»] – e não com o estritamente correto «les Français» [«franceses»].

Mas, tal como a Academia sublinhou, as sugestões para uma escrita inclusiva podem tornar a linguagem escrita ilegível e, portanto, indiscutivelmente menos – e não mais – inclusiva.

O método mais popular é a utilização do "ponto médio" para incluir tanto o masculino como o feminino, como em «Cher·e·s ami·e·s» («Queridos amigos»), que é por vezes substituído por um hífen (cher-e-s ami-e-s), por parênteses (cher(e)s ami(e)s) ou por barras (cher/e/s ami/e/s).

De acordo com a Academia, todas estas formas não só «ofendem a democracia da língua», como também criam dificuldades às pessoas com dislexia e disfasia e aos não francófonos que estão a aprender a língua.

«Longe de ser apoiada por uma maioria de contemporâneos, parece ser apanágio de uma elite, alheia às dificuldades com que se deparam diariamente os educadores e os utilizadores do sistema escolar», afirma a Academia em comunicado.

No entanto, foram dados pequenos passos. Em 2019, a academia decidiu que era aceitável dizer madame la maire [«senhora presidente da câmara»], la ministre [«ministra»], la juge [«juíza»], apesar de serem substantivos masculinos.

Alemanha

Em alemão, ao contrário do que acontece em inglês, todos os substantivos são gramaticalmente codificados como masculinos (der), femininos (die) ou neutros (das). Um cidadão do sexo masculino é um Bürger, uma cidadã do sexo feminino é uma Bürgerin, e ninguém está seriamente a tentar mudar isso.

Mas, tal como em França, há uma frustração crescente com o facto de a forma masculina ser tradicionalmente utilizada para designar grupos de pessoas, mesmo que esse grupo seja constituído por uma mistura de homens e mulheres.

Como a Alemanha não tem um organismo nacional que prescreva ou normalize o uso da língua, as pessoas têm tido liberdade para fazer experiências para resolver este problema. As tentativas de tornar os substantivos genéricos mais inclusivos existem desde os anos 80, mas costumavam ser fenómenos relativamente marginais: a "separação de género" (Bürger_innen) tem sido usada nas comunidades queer, enquanto os grupos feministas costumam usar o i em maiúsculas (BürgerInnen).

No entanto, nos últimos 10 anos, a utilização de um asterisco ou de uma "estrela de género" em formas genéricas (Bürger*innen) começou a surgir fora dos grupos subculturais ou dos círculos académicos. Muitas universidades, escolas e alguns organismos governamentais, como a Agência Federal do Ambiente, recomendam a utilização do asterisco nas suas comunicações internas.

«A estrela de género ainda não é usada pela maioria das pessoas na sociedade alemã, mas teve um aumento impressionante num período relativamente curto», disse Anatol Stefanowitsch, linguista da Freie Universität de Berlim.

Também inspirou uma reação dos partidos políticos de direita, com o populista Alternative für Deutschland [Alternativa para a Alemanha – AfD] a colocar a sua oposição ao "género maluco" no centro da sua campanha eleitoral em 2021. No estado oriental da Saxónia, o governo democrata-cristão proibiu a utilização de estrelas de género ou de diferenças de género nas escolas ou nas autoridades educativas, o que significa que Schüler*innen seria assinalado como um erro nos trabalhos de casa dos alunos.

«Os conservadores descobriram que a linguagem que inclui o género é um tema potente para as suas guerras culturais», afirma Stefanowitsch. «Atualmente, assistimos a tentativas de orientar o uso da língua através do Estado, mesmo que, por enquanto, apenas a nível regional, o que é um fenómeno novo.»

Espanha

Em abril de 2021, a ministra espanhola da igualdade, Irene Montero, fez um discurso em Madrid no qual atacou o governo regional de direita pela sua atitude em relação aos direitos LGBTQ+. Mas não foi o sentimento que fez manchetes – foi a linguagem. Montero utilizou deliberadamente termos masculinos, femininos e de género neutro, referindo-se à «libertad para todos, para todas y para todes» («liberdade para todos os homens, todas as mulheres e todas as pessoas de género neutro»). Falou também de «su hijo, hija e hije» – «o seu filho, filha e descendente de género neutro» – e de «niño, niña y niñe» (rapaz, Europa.jpgrapariga e criança de género neutro).

A sua utilização dos termos foi ridicularizada pelos seus opositores e tornou-se mais uma arma nas guerras culturais entre a esquerda e a direita. Em 2018, a vice-primeira-ministra socialista, Carmen Calvo, foi criticada quando apelou a uma revisão da Constituição espanhola, argumentando que estava toda escrita «no masculino» porque usava a forma masculina para se referir a «ministros e deputados».

A então diretora da Real Academia Espanhola (RAE) – o organismo que supervisiona a evolução da língua espanhola – respondeu aconselhando-a a não «confundir gramática com sexismo» e dizendo que a economia deve ser sempre o princípio orientador da língua. «As falsas soluções, como a utilização do -e em vez do -o e do -a, são absurdas, ridículas e totalmente ineficazes», afirmou Darío Villanueva.

Num relatório de 156 páginas, publicado em janeiro de 2020, a RAE afirma que as mudanças na língua devem ser impulsionadas pelo uso comum e não por decretos vindos de cima. No entanto, sublinhou que, tal como em França e na Alemanha, o plural masculino, como pasajeros («passageiros»), continua a ser a forma não marcada ou predefinida para abranger homens e mulheres, acrescentando que é comummente utilizado e inclusivo. Dizer pasajeros, continua, «não torna invisíveis as passageiras nem as desrespeita».

Itália

Giorgia Meloni deixou bem clara a sua posição no debate sobre a inclusão do género na língua. Pouco depois de se tornar a primeira mulher primeira-ministra de Itália, a ultraconservadora Meloni emitiu uma nota aos jornalistas dizendo que o seu título preferido de Presidente del Consiglio («Presidente do Conselho de Ministros») deveria ser precedido pelo artigo masculino il em vez do feminino la.

A decisão gerou polémica, com a política de esquerda Laura Boldrini a afirmar: «Há algo de estranho nela; esconde-se atrás do masculino.» Meloni respondeu sarcasticamente que não achava que a "grandeza" de uma mulher devesse ser definida por ser chamada "capatrena" – uma forma feminina inexistente de capotreno, ou «condutor de comboios».

Alguns meses mais tarde, a Accademia della Crusca, guardiã da língua italiana, afirmou que os tribunais italianos deviam manter a tradição e evitar a "novidade" de símbolos neutros em termos de género nos documentos jurídicos.

Em italiano, as terminações de substantivos neutros em termos de género para contornar a norma masculina incluem asteriscos ou o chamado schwa, um símbolo que se assemelha a um e invertido. O Observatório da Língua argumentou que a utilização de substantivos neutros em termos de género, por exemplo, quando se dirige ao destinatário de uma carta com car* em vez do masculino caro ou do feminino cara («querido, caro, prezado»), seria artificial e apenas apoiada por grupos minoritários.

Luisa Rizzitelli, feminista e ativista LGBTQ+, afirmou: «Muitas experiências têm vindo do movimento LGBTQ+ e feminista, e não faltam debates acesos sobre este assunto: algumas pessoas usam o asterisco, x, u, y, barra, apóstrofo, schwa, etc. As pessoas não binárias, em particular, utilizam estas possibilidades, que são inovadoras para a língua italiana e estão cada vez mais difundidas.»

Rizzitelli afirmou que o "ponto comum" no centro do debate é a «necessidade legítima de não se sentir apagado; o direito de ver uma língua capaz de reconhecer e, portanto, respeitar a sua identidade».

Fonte

Trabalho publicado no jornal britânico The Guardian em 4 de novembro de 2023. Texto traduzido do inglês com adaptações.