«(...) Hoje, os cientistas sabem que certas características da língua ucraniana foram herdadas diretamente do protoeslavo (...).»
Os apontamentos que se seguem procuram expor o que sucedeu com a língua ucraniana desde o início da sua existência e como ela se transformou no que os ucranianos falam atualmente. O Ukraïner tentará explicar como, apesar de todas as proibições, o ucraniano não apenas sobreviveu, mas também se espalhou muito além das fronteiras da Europa, com o número de falantes a crescer constantemente na Ucrânia.
O que havia antes da língua ucraniana?
Todas as línguas modernas, incluindo o ucraniano, começaram a desenvolver-se há muito, muito tempo, numa época sobre a qual não há dados seguros. Num mundo onde não havia meios de comunicação imediata e o meio de transporte mais rápido era andar a cavalo, as pessoas tinham muito menos oportunidades de comunicar com outras que não fossem dos vizinhos mais próximos. Às vezes havia mercadores ou conquistadores estrangeiros, ou as próprias atividades comerciais e conquistas dos povos ajudavam a ampliar os contatos. Como não havia gramáticas ou livros didáticos para aprender o idioma, os nossos antepassados conheciam-no apenas como era falado nas suas cidades natais ou vilas.
Hoje, sabe-se que a língua ucraniana não existe por si só. Está relacionada com muitas outras línguas, que são as chamadas línguas eslavas. As semelhanças entre as diferentes línguas eslavas não são acidentais. Eles criam um complexo sistema de correspondências. Por exemplo, pode-se notar diferenças nas raízes e sufixos das mesmas palavras. O ucraniano -ів corresponde ao russo -ов e o polonês -ów (pronunciado /uf/), como em Lviv, mas Lvov e Lwów; Krakiv, mas Krakov and Kraków (Cracóvia). Tais diferenças entre diferentes idiomas significam que estes estavam a desenvolver-se de acordo com leis diferentes. E, se os filólogos compreenderem essas leis, não apenas poderão prever como serão as raízes ucranianas em idiomas relacionados (embora nem sempre), mas também poderão supor como eram esses elementos antes de essas leis se tornarem ativas e essas diferenças formarem línguas diferentes.
A língua hipotética, reconstruída, falada pelos eslavos muito antes de tomarem o nome de eslavos, é chamada pelos filólogos de protoeslavo, o qual, no entanto, não apareceu por si só, mas separado da língua protoindo-europeia como aconteceu com o protogermânico, o protobáltico e outros antepassados de dezenas de línguas modernas. Mas, claro, isto é apenas uma teoria. Os cientistas não sabem se essas línguas realmente existiram. Muito provavelmente, havia uma enorme quantidade de subdialetos que antes eram mutuamente inteligíveis, mas mudaram significativamente ao longo do tempo.
Como se formou o ucraniano a partir da hipotética língua protoeslava?
Os filólogos não podem dizer muito sobre o desenvolvimento das línguas eslavas antes do estabelecimento mais ou menos definitivo dos eslavos nesses territórios. A partir da desintegração da unidade linguística protoeslava, ou seja, algures a partir do século VI, inicia-se o período protoucraniano, que dura aproximadamente até ao século XI. As principais características da língua ucraniana como sistema surgiram do final do século XI até meados do século XII. Naquela época, a formação da língua decorreu em duas áreas principais – a Polésia e a Podólia. O linguista Yurii Sheveliov chama esses territórios de «regiões de subdialetos», enfatizando que é desadequado referir como línguas essas formas dialetais iniciais.
O que essas duas regiões fizeram com a língua? Nos territórios onde mais tarde surgirão as línguas russa e bielorrussa, todas as consoantes anteriores às vogais anteriores (e, i, ĕ) são palatalizadas. Portanto, as palavras russas хлеб («pão») ou дерево («árvore») são pronunciadas /xlʲep/ e /dʲerʲɪvə/ [1], enquanto na língua ucraniana, as consoantes antes de e continuam não palatalizadas: дерево /derevo/, небо /nebo/ («céu»). Na palavra хліб («pão»), a vogal, que se originou do protoeslavo ĕ (mais tarde foi denotada pela letra ѣ (yat), transformou-se em i, o que torna a consoante anterior palatalizada.
Além disso, as combinações de sons цв- e кв- nas palavras цвісти e квітнути («florescer») foram preservadas até agora na língua ucraniana, enquanto há apenas цвести na língua literária russa (algumas formas com кв- estão presentes em dialetos ), e kwiatnąć em polaco. A combinação de sons protoeslavos кв- não mudou na Polésia, mas transformou-se em цв- na Podólia. E aqui, pode-se ver outra diferença. O som protoeslavo ĕ (representado pela letra ѣ (yat) em antigos registos escritos ucranianos), transformou-se em і na língua ucraniana (representada pelas letras i e и), mas em е em russo (indicado pela letra e), e em e ou a em polaco (ou seja, por escrito, pois a consoante anterior é palatalizada). Compare-se como a palavra branco soa nestes três idiomas: ucraniano білий /bilyʲ/, russo белый /bʲelyʲ/ e polaco biały /bjauy/.
Hoje, os investigadores sabem que certas características da língua ucraniana foram herdadas diretamente do protoeslavo, por exemplo, as terminações -ові, -еві no caso dativo dos substantivos masculinos singulares (como домові, «à/a uma casa»; князеві, «ao/a um príncipe»), o caso vocativo (друже, «ó irmão»; княже, «ó príncipe»; брате, «ó irmão»), a desinência -мо na primeira pessoa do plural de verbos nos tempos presente e futuro (даємо, «damos»; зробимо, «faremos»), e a alternância de consoantes г, к, х com з, ц, с respectivamente nos casos dativo e locativo de substantivos singulares (слузѣ, «muco»; на березѣ, «na margem/orla»; в рѣцѣ, «na mão»), etc.
Em certas características fonéticas, pelo contrário, a língua na Ucrânia desviou-se do protoeslavo. Já na segunda metade do primeiro milênio d.C. ґ /g/ era pronunciado como г [ɦ]. Outro exemplo, е, depois de ж, ч, ш, й e seguido de consoante não palatalizada, transforma-se em о: жена («esposa») tornou-se жона; человѣк («homem») – чоловік; єго («seu») — його; пшено («milho painço») — пшоно.
Com o aparecimento dos primeiros registos escritos, inicia-se o período de evolução da língua conhecido como ucraniano antigo.
Nesta fase, o ucraniano adquire a maioria das características pelas quais é reconhecido hoje. A mudança mais importante e menos evidente na contemporaneidade foi a redução do número de vogais e o aumento do número de consoantes. O ucraniano costumava ter os sons nasais ę e ą, que são preservados na língua polaca. As vogais breves, representadas por ь e ъ, tornaram-se vogais plenas ou desapareceram. É claro que tanto o ucraniano como o bielorrusso ainda têm o sinal brando (ь), e o russo também tem o sinal duro (ъ). No entanto, são sinais que não representam vogais independentes há muito tempo. A língua protoeslava primitiva tinha 10 vogais, 10 ditongos (ou seja, combinações de duas vogais) e apenas 15 consoantes. Em ucraniano antigo, de acordo com algumas propostas, apenas permaneceram 9 vogais, mas havia cerca de 30 consoantes.
Considerando o número de mudanças que ocorreram na fonética ucraniana, é possível determinar aproximadamente o grau de afinidade entre as diferentes línguas eslavas. Yurii Sheveliov compara as línguas eslavas modernas com base em fenómenos que permaneceram comuns a elas após o colapso do protoeslavo. O mais próximo do ucraniano é o bielorrusso, seguido pelo russo, búlgaro, polaco e eslovaco. Em termos de vocabulário, de acordo com o linguista Konstiantyn Tyshchenko, a mais afim ao ucraniano é novamente a língua bielorrussa (84% do vocabulário está relacionado), seguida do polaco (70%), eslovaco (68%) e russo (62% ).
A língua eslava antiga é o mesma que o ucraniano antigo?
Não.
O facto é que a linguagem escrita foi trazida para as terras ucranianas e bielorrussas com o cristianismo. A língua dos livros era substancialmente diferente da falada – na verdade, eram línguas diferentes. Além disso, os académicos afirmam que os registos escritos religiosos e seculares (por exemplo, leis e decretos) também foram escritos em diferentes idiomas. Havia duas línguas literárias no século XI:
1. O eslavo antigo, também conhecido como eslavo eclesiástico antigo, baseava-se num dos dialetos da língua búlgara antiga e tinha sido criado especificamente para traduzir a Bíblia do grego para um idioma mais compreensível para os eslavos.
2. A língua antiga de Quieve, também chamada eslavo oriental antigo ou ucraniano antigo, era a língua dos documentos formais e outros escritos seculares no território da Rússia de Quieve.
Infelizmente, é impossível reproduzir exatamente o idioma que se falava naquela época porque não havia gravadores de voz ou redes sociais. No entanto, certas características podem ser reconstruídas porque penetraram nas línguas escritas locais. Por exemplo, no Izbornik de Sviatoslav ou nas Coleções de Sviatoslav de 1073 e 1076, existem características que são as da língua ucraniana de hoje e que a diferenciam de seus vizinhos. Por exemplo, a desinência -ть na terceira pessoa dos verbos, confundindo ѣ com и, o que significa que o som denotado pela letra ѣ (yat) foi pronunciado como i.
A partir do século XII, é mais apropriado falar não sobre o eslavo eclesiástico da velha Igreja Eslava, mas sobre o izvod (registo) de Quieve da velha Igreja Eslava. O izvod era uma versão caracterizada por mudanças acumuladas da língua falada, que influenciavam a leitura (a já mencionada má leitura da letra ѣ) ou a grafia das palavras: къдє («onde»), сьдє («aqui») no izvod de Quieve; къдѣ, сьдѣ no izvod de Moscovo. Por exemplo, a letra ѧ (yus pequeno), que representava o som nasal ę em eslavo antigo, era usada em antigos registros ucranianos como uma letra permutável por ıа. Afinal, a grafia antiga de yus transformou-se gradualmente na letra ucraniana я.
No entanto, é difícil distinguir que registos antigos pertencem ao antigo ucraniano. Os manuscritos mais antigos geralmente não indicam o local ou a hora da redação e, quando o fazem, nem sempre dizem a verdade. Ao mesmo tempo, até um livro criado nalgum lugar de Novgorod ou Suzdal pode pertencer aos registos escritos da antiga língua ucraniana, se o copista veio da Ucrânia e vice-versa. Assim, Sheveliov observa que a inscrição na Cruz de Euphrosyne de Polotsk permite classificá-la como um monumento da literatura ucraniana antiga. Enquanto isso, parte do grafito da Catedral de Santa Sofia em Quieve foi obviamente criado pelos falantes do Izvod de Moscovo, o que significa que não pertence aos monumentos da literatura ucraniana.
O izvod de Quieve é a escrita em língua eslava da Igreja Velha na Rus de Quieve. Os linguistas usam o termo escrita ucraniana da língua eslava da Igreja Velha para referir a língua escrita após o colapso do referido Estado. Houve outras tipos de escrita ou redação: russa, bielorrussa, sérvia, etc. A edição ucraniana da língua eslava da Igreja Antiga foi descrita por Lavrentii Zyzanii na Gramática (1596) e codificada por Meletius Smotrytsky na sua própria Gramática (1619).
A escrita ucraniana da Igreja Eslava foi usada nos serviços da Igreja do Metropolita Ortodoxo de Quieve e da Igreja Greco-Católica. Simultaneamente com a Gramática de Lavrentii Zyzanii, foi publicado o primeiro dicionário eslavo-ucraniano da Igreja. As palavras eslavas da Igreja foram interpretadas numa língua derivada da língua antiga de Quieve e estava mais próxima da língua que se falava.
Um fenómeno semelhante – uma clara diferenciação entre línguas escritas e faladas – é inerente a muitas culturas. Por exemplo, na Europa Ocidental, o latim foi a língua da educação, ciência e religião por muito tempo, mas as pessoas usavam línguas diferentes na sua vida quotidiana. No início do século XIV, Dante Alighieri escreveu A Divina Comédia na língua falada da região da Toscana porque morava aí, tornando-se este dialeto a base do italiano literário. Outro exemplo é o do turco otomano que foi usado como língua administrativa e literária no Império Otomano do século XIII ao primeiro terço do século XX. Ainda assim, a maioria dos cidadãos usava o chamado «turco vulgar» (kaba Türkçe), que formou a base da moderna língua literária turca.
É verdade que o poeta ucraniano Ivan Kotliarevskyi escreveu o seu famoso poema Eneida para preencher por fim a lacuna entre a língua falada e várias versões da escrita, como muitas vezes é ensinada nas escolas?
É verdade que nos séculos XVIII e XIX cresceu em toda a Europa um vivo interesse pelos povos, pelas suas tradições e modo de pensar, o que desencadeou a formação de movimentos de libertação nacional, que mais tarde levaram ao surgimento de muitos estados europeus modernos: Alemanha, Itália, República Checa, Polónia, Hungria, etc.
Mas Kotliarevsky tinha outras razões para escrever numa língua falada viva.
O facto é que com a ascensão do Império Russo, a versão ucraniana da língua eslava da Igreja começou a ser substituída pelo russo. A partir de 1720, o decreto de Pedro, o Grande na Ucrânia até à margem esquerda do Dniepre permitia a impressão de livros apenas na versão russa. O decreto de 1729 exigia a reescrita de todos os decretos e ordens governamentais do ucraniano ao russo. A partir de 1740, todos os registos do Hetmanato deveriam ser mantidos em russo. Em 1794, o Metropolita de Quieve Samuyil Myslavskyi emitiu um novo decreto que tornou a versão russa da Igreja eslava obrigatória para a Academia de Quieve-Mohyla. Do ponto de vista da Rússia, era um movimento de padronização da linguagem, mas do ponto de vista da academia ucraniana, com suas tradições literárias e literárias centenárias, eram repressões e proibições.
Quando todas as línguas literárias que existiam nas terras ucranianas foram banidas, que restava para a intelligentsia fazer? Escrever em russo, língua que não era falada no território e cuja tradição não se tinha aí estendido durante várias centenas de anos?
A intelligentsia encontrou uma alternativa: começaram a escrever a língua local falada, porque ninguém a havia proibido ainda. Em 1798, a Eneida de Ivan Kotliarevskyi foi publicada em Sampetersburgo como uma tentativa, um jogo e uma provocação.
A Eneida de Kotlyarevskyi encorajou imediatamente outros a começar a escrever na língua ucraniana viva?
A Eneida era, de facto, uma obra popular entre os intelectuais da época, mas a leitura na língua vernácula era estranha e incomum, razão por que surgiu uma controvérsia sobre o que deveria ser a língua literária ucraniana e sobre se ela poderia ser usada para escrever obras sérias, não apenas as cómicas.
Na década de 1830, outras obras de Kotliarevskyi escritas em vernáculo foram publicadas em Carcóvia (Kharkiv): as peças Natalka Poltavka e Moskal-Charivnyk (O feiticeiro moscovita) e os romances de Hryhorii Kvitka-Osnovianenko, entre as quais havia obras que não eram nada humorísticas, mas, sim, obras sérias, como Marúsia.
Em 1840, o Kobzar de Shevchenko foi publicado em Sampetersburgo. A singularidade de Shevchenko é que ele, um nativo da Naddniprianshchyna (região central da Ucrânia, no curso médio do Dniepre), usou o seu dialeto local nos poemas, mas selecionando as palavras que eram claras para todo o ucraniano, viessem donde viessem, o que deu à poesia de Shevchenko um caráter totalmente ucraniano. Na Naddniprianshchyna, traduções das obras icónicas da literatura mundial – a Bíblia, obras de Shakespeare, Goethe, Byron, Heine foram publicadas na língua ucraniana viva.
Ao mesmo tempo, na Galícia (Halychyna), que fazia parte de outro império, o austro-húngaro, ocorreram processos semelhantes aos da Grande Ucrânia. Em 1848, o primeiro jornal no vernáculo ucraniano Zoria Halytska foi publicado em Lviv. As décadas de 1830 e 1860 foram os anos de renascimento cultural nas terras ucranianas do centro-leste e oeste, quando muitos materiais etnográficos, sermões em língua ucraniana e materiais didáticos sobre a língua ucraniana foram publicados. A linguagem baseada na versão falada pelas pessoas foi, portanto, cada vez mais utilizada na escrita, tendo sido feitas tentativas para a padronizar.
É verdade que a língua literária ucraniana moderna é baseada no dialeto de Poltava-Kyiv?
Sim, porque os autores que foram os primeiros a escrever na língua ucraniana viva vieram das regiões de Poltavshchyna (região de Poltava, no centro da Ucrânia), Naddniprianshchyna (Ucrânia central à volta do Dniepre médio) e Slobozhanshchyna (Ucrânia Livre ou Franca, no nordeste do país). Contudo, a língua literária ucraniana moderna também foi significativamente influenciada pelos dialetos ucranianos ocidentais.
Na segunda metade do século XIX e início do século XX, cerca de 470 ordens de censura foram emitidas no Império Russo, as mais notáveis das quais foram a Circular Valuev de 1863 e o Ems Ukaz de 1876. Esses decretos proibiam a publicação de livros em ucraniano (incluindo os baseados na língua vernácula): primeiro todos, exceto ficção, depois todos, incluindo ficção e até notações musicais. O decreto do Ems também proibiu o uso da língua ucraniana nas escolas, nas igrejas, nos jornais, nas revistas, na ciência, nos documentos formais, nas traduções, nos discursos públicos, nos teatros, etc.
Proibida em todo o Império Russo pela Circular Valuev e pelo Ems Ukaz, a publicação de livros em ucraniano teve de se transferir para as terras ucranianas que não pertenciam ao império na época: a Galícia e a Bucovina. Nessa época, os autores locais entendiam que um dia a Ucrânia se uniria e, portanto, aspiravam a tornar-se parte da “Grande Ucrânia”, concentrando-se na linguagem literária.
Não obstante, quando a atividade editorial se mudou para a Ucrânia Ocidental, ou seja, no final do século XIX e início do século XX, a língua das publicações artísticas, jornalísticas e científicas publicadas em Lviv e Chernivtsi ficou naturalmente saturada de dialetalismos, bem como de termos políticos e científicos que eram usados na Galícia e na Bucovina. Nestas regiões, a terminologia desenvolvia-se mais do que na Grande Ucrânia, porque a imprensa de língua ucraniana publicava há mais de uma década.
No início do século XX, a língua literária ucraniana foi, portanto, significativamente reforçada com palavras originárias da parte ocidental do país.
Como afetou o período de lutas de libertação nacional de 1917-1921 a língua ucraniana?
Foi durante o tempo da Rada (Conselho) Central que o termo ucranização foi usado pela primeira vez. Como escreve Yurii Sheveliov, «após um intervalo de quase duzentos anos, a língua ucraniana torna-se a língua oficial da legislação, administração, exército e assembleias». O ucraniano foi introduzido nas escolas, e instituições educacionais de língua ucraniana foram abertas, incluindo a Universidade Popular da Ucrânia, a Academia Científico-Pedagógica e a Academia de Artes. Havia, claro, uma grande falta de livros didáticos, de terminologia e de especialistas. Assim, no verão de 1917, havia cerca de cem cursos de estudos ucranianos para professores, e uma Sociedade de Educação Escolar privada começou a publicar livros didáticos. Para a educação de adultos, foi criada a rede Prosvit, que contava com bibliotecas próprias, palestras organizadas etc.
Nessa época, iniciou-se a padronização da terminologia jurídica. Muitos termos legais específicos, obviamente retirados dos tempos dos Cossacos, podem ser encontrados nos textos da Rada Central. Muitos termos legais eram empréstimos, ao passo que a linguagem dos documentos da República Popular da Ucrânia Ocidental era muito semelhantes, mas continha mais latinismos.
Durante o Hetmanato, o governo promoveu a ucranização das escolas primárias, bem como abriu novas escolas primárias e secundárias com o ucraniano como língua de instrução, mantendo as russas que já existiam, mas abrindo aqui departamentos de estudos ucranianos. Além disso, havia cursos de verão em estudos ucranianos. Para aumentar o prestígio da língua e da cultura ucraniana, foram estabelecidas instituições estatais: a Biblioteca Nacional, a Academia Ucraniana de Ciências, onde funcionavam comissões dialéticas, ortográficas e terminológicas. “As regras mais importantes da ortografia ucraniana” foram aprovadas.
No que diz respeito ao período da Diretoria, imediatamente após a chegada ao poder, em 3 de janeiro de 1919, foi promulgada uma lei “Sobre a língua estatal na República Popular da Ucrânia”, que exigia o uso do ucraniano no exército, marinha, governo e outras instituições públicas, tendo os cidadãos o direito de recorrer às instituições do Estado nas suas línguas maternas. O ucraniano tornou-se uma disciplina obrigatória nos estabelecimentos de ensino superior.
Naquela época, eram ucranianos os exércitos da República Nacional Ucraniana – UNR – e da Crimeia, que não fazia parte da UNR. Os eventos revolucionários e o movimento de libertação nacional na Ucrânia continental afetaram de tal modo os marinheiros da Frota do Mar Negro, cujos efetivos eram 70-80% ucranianos na época, que se tornaram o núcleo e o principal motor da comunidade ucraniana de Sebastopol. No final de abril de 1917, os soldados ucranianos formavam um grande número de clubes e conselhos ucranianos em suas unidades terrestres e em navios. A editora ucraniana Atos era fundada em Simferopol.
É verdade que o governo soviético nunca fez nada a não ser proibir a língua ucraniana?
Não, o período soviético não foi consistente a esse respeito. Em 1923-1932, durou o período de ucranização, quando o ucraniano se desenvolveu e se espalhou rapidamente.
A ucranização processava-se dentro da política de korenizatsiya (aprofundamento das raízes), que proclamava que os governos das repúblicas sindicais, a classe trabalhadora e a população das cidades em geral seriam significativamente reforçadas pelos seus cidadãos indígenas (ainda em sua maioria camponeses): na República Socialista Soviética da Ucrânia — pelos ucranianos; na Bielorrússia — pelos bielorrussos; na República Socialista Soviética Autónoma da Crimeia — pelos tártaros da Crimeia, etc. Além disso, as línguas nacionais receberiam estatuto oficial, ou mesmo dominante.
Na Ucrânia, a política de korenizatsiya tornou-se ucranização. No romance A cidade (1928), Valerian Pidmohylnyi descreve como a personagem principal, que veio de uma aldeia para estudar na cidade, começou a ensinar a língua ucraniana a funcionários e ganhou um bom dinheiro. Agora os camponeses podiam, assim, ensinar algo aos habitantes da cidade, principalmente às autoridades, se não conhecessem o ucraniano. De acordo com o slogan «unindo a cidade e a aldeia», as cidades foram-se enchendo rapidamente de camponeses e, graças a isso, também foram ucranizadas. A língua ucraniana foi introduzida nas escolas. refira-se, a propósito, que a ucranização também ocorreu naquelas terras que não faziam parte formalmente da URSS, mas eram etnicamente ucranianas: Kuban, Kursk, Voronezh e o Extremo Oriente (Zelenyi Klyn). Publicaram-se livros ucranianos, e o teatro e cinema também eram ucranianos.
Se em 1922 não havia jornais em língua ucraniana, em 1933 havia 373 de um total de 426 títulos e 89 revistas de 118. Regista-se que, em 1933, 83% dos livros na URSS eram publicados em ucraniano. Em 1931, 88 peças em 66 teatros eram encenadas em ucraniano.
Naquela época, a língua não apenas se espalhou – foi sistematizada e elaborada. Concentrou-se muito esforço na compilação de dicionários, em especial, em 1924-1933, com a publicação dos três volumes do inédito dicionário russo-ucraniano, editado por Ahatanhel Krymsky e Serhii Yefremov. Este dicionário forneceu material rico em vocabulário ucraniano concreto. Foi preparado o quarto volume, que não se publicou porque começaram os pogroms de Estaline contra a intelligentsia. Todo o trabalho dos cientistas foi declarado sabotado pelas autoridades.
Em 2016-2017, o Instituto de Linguística Potebnia e o Instituto da Língua Ucraniana da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia reimprimiram três volumes do Dicionário Russo-Ucraniano, editado por Ahatanhel Krymsky e Serhii Yefremov.
Na década de 1920, desenvolvia-se um trabalho maciço no campo da terminologia – vários dicionários terminológicos foram publicados –, o que criou a oportunidade de usar o ucraniano em várias áreas da vida urbana e rural.
Em 1918-1933, foram publicados 83 dicionários terminológicos, 30 deles pelo Instituto da Língua Científica Ucraniana. Os dicionários eram grandes e pequenos (como apêndices de livros didáticos, manuais e revistas). Cobriam uma grande diversidade de tópicos, desde o caso do Dicionário de termos técnicos de tecnologia de beterraba sacarina ao da Terminologia de matemática pura.
No curso da ucranização, a ortografia foi padronizada. Embora tivesse havido anteriormente tentativas para essa tarefa (as chamadas normas Kulishivka, Drahomanivka e Zhelekhivka, compiladas no século 19), elas não levaram em conta as peculiaridades das diferentes regiões onde a língua ucraniana estava em uso. Em 1925, foi nomeada uma comissão de 20 cientistas, incluindo alguns representantes da Ucrânia Ocidental que não pertenciam à URSS na época. Em 1928, a ortografia foi aprovada e passou a ser obrigatória. Hoje é conhecida como «ortografia de Kharkiv» ou gramática Skrypnykivka (em homenagem a Mykola Skrypnyk, que era o Comissário de Educação do Povo na época). Tornou-se uma espécie de compromisso entre as versões de escrita usadas na Grande Ucrânia e na Galícia. Foi decidido escrever palavras originais de acordo com a pronúncia dos dialetos e palavras emprestadas da Ucrânia Central e Oriental, como eram escritas na Galícia.
Porque recorreram os soviéticos à korenizatsiya?
O governo bolchevique dirigia-se às nações nas respetivas línguas para obter a sua compreensão e aprovação. Os bolcheviques agiram assim para os povos das repúblicas soviéticas os aceitarem como amigos, e não como invasores. Portanto, a ucranização era um meio, não um objetivo. O objetivo era fortalecer o poder dos bolcheviques.
Depois de a ucranização ter terminado, começaram então as proibições e a repressão?
Sim, em 1932 (o início do Holodomor) a política de korenizatsiya começou a ter restrições. A ucranização foi declarada “petliurista” (em homenagem a Symon Petliura, um político ucraniano que se opôs ativamente aos bolcheviques e estava em sua lista de procurados). Muitos filólogos, escritores, dramaturgos, diretores e cientistas foram presos, enviados para campos de concentração ou executados.
Em 1933, a comissão de ortografia aboliu as normas da “ortografia de Kharkiv” de 1927-1928. Declararam-nos, juntamente com os dicionários recém-compilados, como «nacionalistas-burgueses». As autoridades começaram a trabalhar em novos dicionários projetados para «remover barreiras artificiais entre as línguas ucraniana e russa» e para «refletir o efeito benéfico da língua russa no ucraniano». Além disso, as autoridades soviéticas acreditavam que era necessário desenvolver um «vocabulário comum das línguas dos povos da URSS» e introduzir amplamente internacionalismos.
O governo soviético começava agora a interferir nos mecanismos internos da língua: era proibido usar certas palavras, construções sintáticas e formas gramaticais. Em vez disso, introduziram as palavras que estavam mais próximas do russo ou mesmo decalques. Retiraram o caso vocativo, o uso das formas de tratamento ucranianas: пані («senhor»), добродійко («senhora»); пане, добродію. Suprimiram até a letra ґ do alfabeto ucraniano, muito embora esta letra ocorra em mais de 300 palavras no dicionário de Hrinchenko (1907-1909).
Também houve restrições quanto ao nível de uso da língua ucraniana, por exemplo, na ciência. Em 1970, o Ministério da Educação da URSS emitiu uma ordem exigindo que as dissertações fossem escritas e defendidas exclusivamente em russo.
A disseminação da língua russa na Ucrânia foi, sem dúvida, também facilitada pela política soviética de reassentamento. Durante a era soviética, muitos russos e indivíduos de outras nacionalidades foram realocados para o território da RSS da Ucrânia. Não podendo usar os seus idiomas nacionais, usavam, em vez disso, o russo.
Qual era a língua de instrução nas escolas, faculdades e universidades nos tempos soviéticos?
Em 20 de abril de 1938, foi emitida a resolução do Conselho de Comissários do Povo da RSS da Ucrânia e do Comité Central do Partido Comunista da Ucrânia “Sobre o estudo obrigatório da língua russa em escolas não russas da Ucrânia”. Em 1959, a Rada Verkhovna da RSS ucraniana aprovou uma lei “Sobre o fortalecimento da conexão entre escola e vida e o desenvolvimento do sistema de educação pública na RSS ucraniana”. De acordo com a nova lei, não era obrigatório estudar a língua ucraniana nas escolas. O resultado pode ser ilustrado por uma cena de um filme biográfico Forbidden (Ucrânia, 2019). A cena inclui uma escola em Horlivka, na região de Donetsk, onde a língua e a literatura ucranianas são ensinadas por Vasyl Stus, que mais tarde se torna um famoso poeta ucraniano. Uma mãe faz um pedido – quer que a língua ucraniana seja retirada dos estudos da sua filha, aluna que a professora elogia por causa da dedicação e talento. A mulher agradece à professora, pede desculpas e explica que é melhor para a filha aprender russo para facilitar sua vida. Acontece que esta é a segunda recusa de aula do idioma em uma semana. A ação decorre por volta de 1963, e a situação concorda plenamente com a lei de 1959. As pessoas rejeitavam o ucraniano porque o consideravam perigoso e inútil, em contraste com o russo.
Quase todas as instituições de ensino de nível médio (escolas de formação), exceto as culturais e pedagógicas, foram russificadas. Nas universidades de Dnipropetrovsk, Kharkiv, Odesa e Donetsk, o ensino em todos os departamentos, exceto no departamento de filologia ucraniana, era realizado em russo. O russo foi usado para ensinar em instituições educacionais politécnicas, industriais, médicas, comerciais, agrícolas e económicas. Eram exceção algumas regiões ocidentais.
É por isso que na Ucrânia, algumas pessoas nunca estudaram a língua ucraniana nas escolas, nem leram livros e jornais ucranianos, nem assistiram a filmes ucranianos.
Os ucranianos reconciliaram-se com a política de russificação ou ainda protestaram contra ela?
Mesmo nos tempos mais sombrios da repressão de Estaline, houve vozes de protesto contra a russificação. Houve muitos protestos tanto naquela época como após a morte de Estaline. Seguem-se alguns exemplos.
Em 1939, Maksym Rylskyi escreveu em Literaturna hazeta (Jornal de Literatura): «O sistema de decretos, proibições e restrições, o sistema de administração não pode ser útil para o desenvolvimento da cultura da língua.» Assinale-se que Maksym Rylskyi também foi perseguido e preso, mas não foi enviado para um campo de concentração. Em 1969-1970, Borys Antonenko-Davydovych, no jornal Literaturna Ukraïna (Ucrânia Literária) e na revista Ukraina, levantava a questão de devolver a letra ґ ao alfabeto ucraniano juntamente com uma série de palavras e formas anteriormente retiradas. Nessa época, Antonenko-Davydovych já havia passado mais de 10 anos em prisões e campos de concentração. Em páginas de revistas, Ivan Svitlychnyi criticou abertamente o dicionário russo-ucraniano de 1948 por russificar a língua ucraniana e até trabalhou num dicionário de sinónimos no campo de concentração. No entanto, não foi capaz de completá-lo devido às difíceis condições de vida que levaram à doença e à morte prematura.
Em 1959, quando foi aprovada a lei “sobre o fortalecimento da conexão entre a escola e a vida e o maior desenvolvimento da educação pública na RSS ucraniana”, segundo a qual o ucraniano não poderia ser estudado nas escolas, os poetas ucranianos Mykola Bazhan e o já mencionado Maksym Rylskyi manifestaram-se contra esta lei na imprensa. Pavlo Tychyna, então presidente da Rada Verkhovna do SSR ucraniano, demitiu-se por não querer participar da votação. Oles Honchar e Andrii Malyshko, que eram deputados do parlamento da RSS da Ucrânia, escreveram uma declaração conjunta de protesto contra a adoção da lei.
Em 1965, Ivan Dziuba escreveu um livro com um título que perguntava retoricamente: «Internacionalismo ou russificação?» As autoridades declararam o livro antissoviético e a sua posse e distribuição um crime.
Em 1978, Oleksa Hirnyk cometeu um ato de autoimolação em protesto contra a russificação da Ucrânia. Antes disso, distribuía panfletos manuscritos há quatro anos, falando contra a ocupação russa e a russificação.
Ofereceram em especial resistência aqueles que pareciam ter sido perseguidos pelo governo soviético e eram, à primeira vista, bem tratados. Por exemplo, nas décadas de 1940-1950, publicaram-se textos como o roteiro de Oleksandr Dovzhenko, Ucrânia em Chamas, e o poema Amem a Ucrânia, de Volodymyr Sosiura, duas obras que se tornaram quase manifestos políticos disfarçados de literatura. Ou, ainda como exemplo, mencione-se a primeira enciclopédia cibernética do mundo, que foi publicada em ucraniano. Como aconteceu isto? Foi importante para o cientista Viktor Hlushkov, um dos primeiros cientistas da computação do mundo, publicar uma enciclopédia de cibernética – para difundir a ciência. E para o escritor Mykola Bazhan, que ocupou altos cargos governamentais na RSS ucraniana por muitos anos, era importante que a enciclopédia fosse publicada em ucraniano. Bazhan conseguiu convencer Hlushkov de que a primeira edição deveria ser publicada em ucraniano – eles disseram que seria um teste e que, após a edição, seria publicada em russo. Em 1973, a enciclopédia da cibernética foi publicada em dois volumes em ucraniano.
Em que mudou a situação da língua depois de a Ucrânia ter conquistado a independência?
Dois anos antes da independência, em 1989, quando a União Soviética vivia a Perestroika, foi aprovada a lei sobre línguas na República Socialista Soviética da Ucrânia (RSS ucraniana), na qual se afirmava que «a RSS ucraniana confere ao ucraniano o estatuto de língua oficial». Este estatuto ficou consagrado na Constituição da Ucrânia independente (1996).
No entanto, depois de muitos anos de domínio colonial, a situação desenvolveu-se de forma lenta, e a diglossia1, que durou séculos, continuou a impor-se.
Por um lado, o interesse na história da Ucrânia cresceu. É disso exemplo Ucrânia: Uma História, do historiador canadiano Orest Subtelnyi, obra publicada pela primeira vez em ucraniano em 1991 com uma edição de 100 000 cópias. Além disso, embora a década de 1990 tivesse sido marcada por uma situação económica difícil, foram publicados livros de filólogos que tinham sido reprimidos ou deliberadamente esquecidos pela União Soviética. Entre estes livros contam-se o Dicionário Prático de Sinónimos da Língua Ucraniana (1993), de Sviatoslav Karavanskyi, a História da Língua Literária Ucraniana (1995), de Ivan Ohienko, e dicionários da língua ucraniana, como o Dicionário de Hrinchenko, em dois Volumes (1996). Palavras proibidas nos tempos soviéticos começaram a retomar uso.
Por outro lado, não existia uma política linguística equilibrada que ajudasse a superar a diglossia, e o ucraniano continuou a perder para o russo em muitas áreas. O número de escolas a lecionar o ucraniano como língua de instrução estava em crescimento. O número de horas para o seu estudo aumentou. As campanhas de admissão nas universidades foram realizadas na língua oficial. O exame de língua ucraniana tornou-se obrigatório. Todas estas conquistas foram importantes. Não obstante, na comunicação social, o russo dominava. Para além disso, foram abertas na Ucrânia filiais dos meios de comunicação russos.
Embora artistas ucranianos conhecidos, como Katia Chilly, Yurko Yurchenko, Viktor Pavlik, os grupos VV, Skriabin, Okean Elzy, e outros tenham aparecido na cena musical, o russo permaneceu a língua mais prestigiada no mundo do espetáculo. A publicação de livros em ucraniano correspondia mais a uma questão de entusiasmo do que a um negócio real, e o mercado interno não foi protegido ou promovido a nível estatal. Mais uma vez, os livros continuaram a ser importados da Rússia sem obstáculos. Estes eram mais baratos do que os ucranianos devido à sua maior circulação, que diminuía o custo de cada livro. Da mesma forma, filmes russos e canais de TV russos eram difundidos sem obstáculos. Filmes de outros países foram dobrados para russo e materiais dobrados em russo eram comprados à própria Rússia.
Após a Revolução Laranja, verificaram-se algumas mudanças, principalmente no campo da comunicação social. Fixaram-se cotas de 50% para a transmissão de música em ucraniano em todas as estações de televisão e rádio. Em 2006-2008, uma série de decretos governamentais exigiu que os distribuidores dobrassem e/ou legendassem em ucraniano todos os filmes estrangeiros.
Apesar da controvérsia sobre se filmes em língua ucraniana poderiam ser produzidos em massa, as pessoas em todo o país continuaram a frequentar os cinemas depois dos regulamentos que tornaram obrigatória a dobragem/legendagem de filmes em ucraniano. De acordo com uma pesquisa do Instituto Internacional de Sociologia de Quieve, apenas 3% dos cidadãos afirmaram que a dobragem ucraniana os impediu de ir ao cinema; e Carros (2006), o primeiro filme de animação dobrado, foi exibido em duas versões – ucraniana e russa –, tendo-se revelado que a versão ucraniana foi vista por 15% mais espectadores do que a russa. Na região de Donetsk em particular, onde prevalece a maioria de língua russa, um número superior de espectadores assistiu a este filme em ucraniano.
Não devemos esquecer que a Rússia influenciou deliberadamente a situação linguística na Ucrânia durante todo este tempo. Um dos exemplos claros aconteceu em 2009, quando, em resposta às medidas de ucranização de Viktor Yushchenko, o presidente russo Dmitry Medvedev enviou uma carta aberta ao presidente da Ucrânia acusando-o de querer expulsar a língua russa da comunicação social, da ciência, da educação e da cultura.
Sob a presidência do pró-russo Viktor Yanukovych, foram feitas tentativas de derrubar as conquistas linguísticas do presidente anterior. Estas tentativas incluíram a decisão de substituir a dobragem obrigatória de filmes em ucraniano pela simples dobragem obrigatória de filmes na Ucrânia (que poderia ter lugar em qualquer língua), e pela legendagem obrigatória de filmes em ucraniano se o filme fosse dobrado noutra língua. Na época, também foi aprovada a chamada Lei Kolesnichenko-Kivalov (Lei sobre os princípios da política estatal de língua n.º 5029-VI 2012), que ampliou o uso de outras línguas na Ucrânia, que, na prática, eram sobretudo a russa.
O período de 2014 a 2019, após a vitória da Revolução da Dignidade, pode ser designado de nova tentativa de ucranização. Algumas mudanças significativas começaram a acontecer numa área-chave do uso da linguagem – a educação. Em 2017, foi aprovada uma nova lei «sobre educação». Até então, na Ucrânia, estudava-se e ensinava-se de acordo com a lei aprovada antes da proclamação da Independência, em maio de 1991. Em março de 2020, foi aprovada a Lei da Ucrânia "Sobre o Ensino Médio Geral Completo", que determinava a adoção do ucraniano no ensino médio.
A lei estipula que todos os alunos que terminam o ensino (12.º ano) devem ser fluentes na língua nacional.
Em 2019, a Lei da Ucrânia "Sobre garantir o funcionamento da língua ucraniana como língua estatal" foi finalmente aprovada. Imediatamente após a entrada em vigor da lei, verificou-se um aumento do uso do ucraniano na esfera pública, incluindo no Verkhovna Rada (parlamento ucraniano) e nos governos locais. O setor de serviços também assistiu a mudanças marcantes.
Além disso, durante este período, entre 2014 e 2019, foram criadas instituições culturais: a Fundação Cultural Ucraniana, o Instituto do Livro Ucraniano, o Instituto Ucraniano. Todas essas instituições foram projetadas para apoiar a cultura ucraniana, para a dotar de novos modelos e para a promover. Foram investidos fundos significativos no desenvolvimento do cinema e de outras indústrias criativas durante esse período. Isto ficou claro, em particular, pelo facto de em 2014-2019 terem sido lançados cento e dez filmes da produção ucraniana, a esmagadora maioria deles – em ucraniano.
A língua mudou desde a Independência?
É claro. As gírias mudaram, como por definição mudam em poucos anos em todas as línguas. Surgiram também neologismos para referir novos fenómenos. Na década de 1990, certas palavras proibidas ou deliberadamente esquecidas nos tempos soviéticos começaram de novo a ser usadas.
Ao mesmo tempo, começou a rejeição dos russismos que tinham sido impostos à língua ucraniana e amplamente utilizados anteriormente.
E, claro, como o inglês é a língua dominante no mundo de hoje, o ucraniano incorpora anglicismos todos os dias. As palavras emprestadas adquirem afixos ucranianos.
Devemos desistir de todas as palavras semelhantes ao russo?
Não, de forma alguma.
Por causa da política de russificação previamente implementada, algumas pessoas querem efetivamente esquecer tudo o que parece russo. Por essa razão, começam a evitar palavras semelhantes ao russo. Mas, na verdade, ucranianos e russos estão relacionados, e os seus vocabulários evidenciam semelhanças. Autossuficiência não é lutar contra qualquer coisa que soe diferente, é sobre falar ucraniano sem olhar para línguas vizinhas.
Além disso, palavras que não soam semelhantes ao russo nem sempre são específicas do ucraniano. Por exemplo, a palavra ucraniana dakh («telhado») é, na realidade, um empréstimo da palavra alemã Dach («telhado»).Também a palavra russa para «telhado», krysha, que ainda é amplamente utilizada, embora geralmente seja entendida como um russismo, é uma palavra eslava comum derivada da raiz kryty («cobrir»). Houve dezenas de processos que desencadearam mudanças nas palavras e nos seus significados. Para além das referidas, há ainda outras palavras que são semelhantes ao russo, mas na verdade não são.
Adotar empréstimos baralha a língua?
O empréstimo lexical é um fenómeno natural em todas as línguas cujos falantes estão em contacto regular com falantes estrangeiros. O território onde a língua ucraniana é falada teve desde sempre fronteiras ativas e esteve em contacto próximo com as culturas emblemáticas de diferentes períodos ou regiões. Isto afetou significativamente a língua que os ucranianos falam hoje.
Os empréstimos geralmente entram no idioma por vagas e podem preencher uma determinada área de uso. Por exemplo, antes de a antiga língua ucraniana surgir, o protoeslavo ficou repleto de empréstimos germânicos nas esferas político-militar e doméstica, com palavras como príncipe, capacete, rei, espada, regimento, bem, cenoura e rabanete. Mais tarde, nos séculos XIII-XIII, o ucraniano adotou muitos germanismos que eram usados no campo do artesanato e do comércio, como as palavras serralheiro, peleteiro, carpinteiro, feirante e contabilista.
No século XI, muitas palavras gregas usadas na esfera religiosa e eclesiástica entraram no ucraniano (principalmente através do eslavo antigo): por exemplo, palavras como anjo, apóstolo, bíblia, ícone e muitas outras, incluindo decalques. Nos séculos XVI e XVII, quando o grego antigo era estudado nas escolas, muitas palavras gregas denotando termos escolares entraram no ucraniano, como palavras que denotavam matemática, filosofia, vocabulário, sintaxe, drama, teatro e coro. É claro que a antiguidade e o cristianismo, tendo constituído a base da civilização europeia, dotaram as línguas europeias de palavras gregas e de latinismos. Entre as línguas ocorreram posteriormente trocas de palavras já modificadas. O grego antigo e o latim estão particularmente presentes na maioria das palavras da ciência, tecnologia, política e cultura em muitas línguas.
Contactos próximos com a estepe trouxeram empréstimos turcos. Nos tempos dos cossacos, o ucraniano recebeu ainda mais palavras turcas devido a estreitas conexões com a Crimeia, como por exemplo melancia, abóbora, caldeirão, tapete e celeiro. Muitos termos de um vocabulário tradicional dos cossacos, incluindo a própria palavra kozak, eram na verdade turcos.
O iídiche tornou-se uma das principais línguas em termos de impacto na formação do ucraniano. Ocorreram trocas por meio de duas vias: por um lado, palavras que denotam conceitos como borsch, kozak (distorcido pelo francês em cossaco) e estepe passaram da língua ucraniana para as europeias através do iídiche. É por isso que na Europa se diz borscht, não borshch, porque esta palavra é assim pronunciada em iídiche. Ao iídiche, os ucranianos tomaram de empréstimo as palavras bolsa, vigarista, ferro, varanda, grito, e é de realçar que, sob a influência do iídiche, o som ґ /g/ foi devolvido à língua ucraniana. Há muito tempo, no início de seu desenvolvimento, este som protoeslavo quase desapareceu da língua ucraniana, tendo permanecido uma consoante suave (lenis) correspondente a k, uma consoante (fortis). Em seguida, o som ґ regressou ao ucraniano em empréstimos do iídiche, alemão e de algumas outras línguas. Meletius Smotrytsky, ao criar a sua gramática, tomou uma letra de empréstimo para transmitir este som dos gregos.
Em simultâneo, o ucraniano foi sendo preenchido com palavras emprestadas de muitos vizinhos ocidentais: polaco, alemão, húngaro, romeno e outras línguas.
Não é difícil adivinhar qual é a língua donde atualmente vêm os empréstimos do ucraniano. Trata-se da língua que atualmente influencia a maioria das línguas do mundo. Negócios, educação, tecnologia – todas essas áreas de atividade estão cheias de palavras em inglês. Smartphone, cashback («reembolso»), creative industries («indústrias criativas»), crowdfunding, online commerce («comércio em linha»), event («evento, acontecimento»), IT cluster («cluster ou aglomerado de tecnologias de informação»), blockbuster («êxito de bilheteira»), todas soam praticamente da mesma maneira em ucraniano. Porém, nem todas entraram na língua literária e nem entrarão. Foi já referido que o empréstimo lexical é um fenómeno natural; no entanto, às vezes um discurso repleto de palavras recém-chegadas pode ser difícil de entender. É por isso que faz sentido procurar equivalentes baseados em palavras ou radicais ucranianos concretos, esforço que os ucranianos costumam fazer. Desta forma, existem palavras originais ucranianas para denotar crowdfunding, leader (líder) etc. bem como palavras extraídas das profundezas da língua, como as que significam «aeroporto», «prazo», «ambiente» e «foto».
O ucraniano "emprestou" palavras suas a outras línguas?
Naturalmente, certas palavras passaram da língua ucraniana para outras. Em primeiro lugar, encontramos palavras exóticas que representam realidades puramente ucranianas, como borsch, varenyks, hryvnia, vyshyvanka, bandura, e, o que é especialmente interessante, Maidan. Por que razão é este facto tão interessante? A palavra maidan é um empréstimo do persa através do árabe e turco. No entanto, devido a acontecimentos políticos significativos na história da Ucrânia – a Revolução Laranja e a Revolução da Dignidade, que os ucranianos chamam Maidan, – palavra associada pelos estrangeiros à Ucrânia e que denota as manifestações que aí ocorreram. Além disso, há algumas palavras do ucraniano que são consideradas empréstimos em polaco, russo, húngaro e romeno.
Devemos desprezar os dialetos e lutar zelosamente pela pureza da linguagem?
O conceito de pureza da linguagem é relativo porque a linguagem literária resulta de um acordo: os filólogos decidiram considerar certas palavras e formas corretas e outras incorretas. A própria língua literária vem de dialetos – como já foi mencionado, a língua literária ucraniana é baseada no dialeto de Quieve-Poltava, ou no subdialeto do Dniepre médio, mas foi significativamente influenciada por outros dialetos, incluindo o subdialeto do Dniestre.
Em geral, do ponto de vista científico, os dialetos incluem o jargão e a gíria (sendo chamados dialeto social ou socioleto). Esta secção é sobre os dialetos regionais, ou, por outras palavras, as peculiaridades da fala em diferentes regiões.
Os estudiosos dividem a língua ucraniana em três dialetos: setentrional (ou Polésia), do sudoeste e do sudeste. Os dialetos são subdivididos em subdialetos (existem apenas 15 subdialetos dentro de três dialetos). Dentro dos subdialetos, existem variedades (cada aldeia e cidade tem sua própria). Por último, cada pessoa tem seu próprio idioleto.
As características mais arcaicas estão preservadas no dialeto norte. Nas aldeias ao norte da região de Chernihiv ou na região de Quieve, podem ser ouvidos sons ou palavras que foram usadas antes dos tempos da Rússia de Kiev!
No entanto, muitas características arcaicas também são preservadas nos dialetos da região dos Cárpatos, por exemplo, nos dialetos de Hutsul e Transcarpátia.
Acredita-se muitas vezes que certas palavras estão presentes nos dialetos de certas regiões porque são empréstimos de línguas vizinhas. Com efeito, isso acontece, por exemplo, na Transcarpátia, chamam-se a cidade de varosh porque se diz assim em húngaro, país vizinho: város. Na Bessarábia, usa-se a palavra romena para «milho». Muitas vezes acontece que uma palavra ou forma existia numa certa área muito antes de as fronteiras serem estabelecidas, o que levou a que esse território passasse a pertencer a dois Estados diferentes. A situação política leva a que uma palavra ou forma seja preservada na língua literária de um Estado e substituída por outra forma noutro Estado, permanecendo porém no dialeto.
Por que razão a língua da diáspora soa tão... diferente?
Já nos meados do século XVIII, toda a região de Prešov, no nordeste, e as comunidades da Transcarpátia se mudaram para os Balcãs, fugindo da pobreza e da falta de terra.
Da década de 1870 até o início da Primeira Guerra Mundial, os ucranianos viajaram em massa para a América do Norte e do Sul, e para a Sibéria. Durante os vinte anos entre as guerras, emigraram novamente para os Estados Unidos e para o Canadá, e também muitas vezes para os países europeus. Após a Segunda Guerra Mundial, Austrália e Nova Zelândia foram adicionadas a esta lista.
Imagine-se a língua do final do século XIX até o primeiro terço do século XX. Se um ucraniano encontrasse um professor da Galícia da época, compreender-se-iam, é certo, mas muitas palavras não seriam familiares para um ucraniano moderno, e mesmo que as palavras fossem familiares, a pronúncia poderia ser estranha.
E essa é a língua que os ucranianos, seja da Galícia ou da Grande Ucrânia, trouxeram para as regiões para onde emigraram. Na Ucrânia, a língua mudou numa direção: sovietização, desarmamento, russificação. Não houve apenas uma transição completa para o russo, mas houve a substituição de certas palavras ucranianas por versões mais próximas do russo, e a língua foi influenciada por novas realidades, que não tinham lugar nas comunidades ucranianas na Alemanha ou na América, porque as realidades eram diferentes. Como resultado, por um lado, a língua dos emigrantes ficou como que congelada, preservada e, por outro lado, foi complementada por empréstimos das línguas locais. Por essa razão, aos ucranianos parece que a língua da diáspora é cómica, enquanto a diáspora pensa que os ucranianos estão completamente russificados, embora, na verdade, o ucraniano exterior esteja cheio de arcaísmos e inclua um conjunto de empréstimos que o tornam diferente da língua ucraniana falada no território da Ucrânia.
1 Diglossia – Funcionamento de duas línguas numa sociedade, em diferentes esferas: por exemplo, uma língua usa-se na política, educação, ciência, vida pública e outra na vida quotidiana ou em manifestações folclóricas. Neste âmbito, uma língua é percecionada como "mais prestigiada" ou "superior", e a outra como "menos prestigiada" ou "inferior".
Como nasceu a língua mista ucraniano-russa – o surzhyk?
O russo e o ucraniano, como línguas vizinhas, influenciaram-se obviamente um ao outro. Em russo, há muitos ucranismos; no entanto, desde o início do século XVIII, o russo começou a influenciar o ucraniano devido a circunstâncias especiais: a língua do império tornou-se a língua da colónia. Os ucranianos que se tornaram oficiais czaristas ou soldados adotaram o vocabulário russo. Quando o governo russo começou a funcionar em cidades ucranianas, os russos chegaram à Ucrânia em grandes grupos, o que também afetou o discurso dos moradores locais. A diglossia foi implantada na Ucrânia. O russo era usado no governo, ensino e cultura, enquanto o ucraniano era usado no quotidiano.
Na viragem dos séculos XIX e XX, dois terços dos habitantes da Grande Ucrânia eram russos e judeus russificados devido à política de reassentamento. A grande maioria dos camponeses eram ucranianos e, quando a industrialização começou e eles se mudaram em massa para a cidade, adotaram a língua mais comum, emergindo o contraste: o ucraniano era a língua da aldeia, e o russo era a língua da cidade. Estes camponeses não falavam bem russo, e, assim, ucraniano e russo foram-se misturando. Assim nasceu uma língua mista – o surzhyk [*].
A diglossia nas terras ucranianas foi evidente durante os séculos XIX e XX. Depois da independência da Ucrânia, a língua russa não desapareceu, pois russos e ucranianos russificados continuaram a comunicar em russo, por ser uma língua "mais prestigiada" ou apenas por hábito. Além disso, o russo continuou a ocupar a comunicação social: televisão, rádio, jornais e revistas. Muitos desses meios de comunicação eram, de facto, da Rússia — na década de 1990, a maioria dos ucranianos ainda assistia à ORT, RTR e a outros canais de TV geridos a partir de Moscovo. Portanto, as condições eram favoráveis para o desenvolvimento do surzhyk: a língua ucraniana local já misturada com o russo local interagia com o russo da Rússia.
Hoje, o ucraniano, que se tornou a língua da administração pública, do ensino, da ciência e da maioria da comunicação social, é cada vez mais uma língua "prestigiada", enquanto o surzhyk ainda é o tipo de discurso daqueles pouco escolarizados. No entanto, a experiência de outros países que saíram da situação colonial e que têm tipos de fala híbrida sugere que quanto mais a língua ucraniana for usada em público – na comunicação social, ensino, governo, serviço – menos espaço será deixado para o surzhyk.
Por que razão alguns escritores ou outras pessoas instruídas escrevem publicações nas redes sociais em surzhyk?
O surzhyk também é frequentemente usado de forma bem-humorada. Está quase ausente da comunicação social, mas muitas vezes pode ser encontrado nas redes sociais, em publicações humorísticas. Ucranianos instruídos – muitas vezes escritores, editores, jornalistas, tradutores – falam e escrevem postagens em surzhyk (embora, como é óbvio, falem uma língua literária), como se convidassem os seus leitores para uma espécie de "círculo de confiança". Muitas pessoas cresceram com o surzhyk, e este pode ser associado à casa. O surzhyk às vezes cria uma atmosfera de saudade, conforto e confiança. Livros escritos inteiramente em surzhyk, como as obras-primas da literatura ucraniana de Mykhailo Brynykh e obras-primas da literatura mundial, vieram do mesmo humor jovial. Esta não é , naturalmente, a língua que ouvimos nos comboios suburbanos – está cheia de anglicismos, mas ainda é surzhyk.
O surzhyk é uma língua ou um dialeto separado?
Não, não é.
Algumas palavras que parecem pertencer ao surzhyk são, na verdade, elementos de um dialeto. Mas o surzhyk em si não é nem uma língua nem um dialeto porque tanto as línguas como os dialetos têm as suas normas, mesmo que não sejam estabelecidas espontaneamente e não sejam codificadas. Por seu turno, o surzhyk não tem norma – uma pessoa escolhe espontaneamente palavras de uma ou outra língua.
Muitos ucranianos mudaram para russo devido à situação política. E terá havido quem tenha mudado do russo ou de outras línguas para ucraniano?
Há muitos exemplos deste tipo de mudança. Uma russa, Mariia Vilinska, estudou ucraniano e tornou-se uma escritora ucraniana, sob o pseudônimo Marko Vovchok. Hryhorii Kvitka-Osnovianenko escreveu peças em russo nas décadas de 1820 e 1830, mas, no final da década de 1830, começou a escrever em ucraniano e foi um "defensor" das possibilidades artísticas da língua ucraniana. Olena Kurylo, que veio de uma família judaica, tornou-se uma proeminente filóloga ucraniana e foi submetida à repressão de Estaline. Oleksandr Oles não falava constantemente ucraniano, embora pertencesse a uma família ucraniana; decidiu adotar totalmente a língua por ocasião da inauguração do monumento a Kotliarevskyi em Poltava, onde ele conheceu Panas Myrnyi, Lesia Ukrainka, e outras figuras da cultura. Quando era criança, Olena Teliha falava principalmente russo em família, mas quando um dos monarcas russos chamou a sua segunda língua, a ucraniana, de «língua de cão», ela reagiu fortemente e tornou-se intransigentemente ucraniana.
Encontramos também exemplos interessantes hoje em dia. Volodymyr Rafeenko, um escritor de Donetsk, que escreveu apenas em russo até 2014, partiu para Kiev após a ocupação de sua cidade natal, estudou ucraniano para poder escrever ficção nesta língua, e em 2019 publicou o romance Mondegreen em ucraniano. Na apresentação do livro, este autor contou uma história chocante. Sobre uma das suas avós, que falava russo puro e nunca falava ucraniano, descobriu-se mais tarde que tinha nascido e crescido numa família de língua ucraniana. Quando chegou à cidade, as colegas riram do seu russo desajeitado. Ela decidiu então aprender russo melhor do que todos elas. Perdeu o ucraniano por causa do sentimento de vergonha criado pelas circunstâncias da época. A outra avó de Volodymyr também falava russo. O ucraniano da sua infância era, na sua vida adulta, apenas usado para se dirigir a seus animais de estimação – gatos e cães.
Quando, na Praça Maidan, morreram o bielorrusso Mikhail Zhiznevsky, que viveu na Ucrânia, e o arménio Sergey Nigoyan, que nasceu e cresceu na Ucrânia, e, sobre esse acontecimento, leu (poucos dias antes de sua morte) os poemas de Shevchenko, ficou claro mais uma vez que a Ucrânia é um estado multiétnico: tártaros da Crimeia, judeus, russos, búlgaros, armênios, gagaúzes, polacos e representantes de outros grupos étnicos que t~em cidadania na Ucrânia são todos ucranianos.
Devido às convulsões da história, o ucraniano não é necessariamente a língua dos antepassados para muitos ucranianos, e as suas histórias familiares são diferentes. Espera-se, porém, que os ucranianos continuem escolhendo o ucraniano como a língua dos seus filhos; é a língua não só de muitas gerações de pessoas que viveram nessas terras, mas também a língua do futuro. E devem lembrar: a Ucrânia de língua ucraniana é a Ucrânia protegida de um inimigo externo pela sua própria unidade.
[* Na origem, a palavra ucraniana surzhyk (do protoeslavo *sǫ — «com» + *rъžь — «centeio») — referia-se a uma mistura de diferentes cereais que incluía centeio ou a um produto como a farinha ou o pão feitos com essa mistura.]
[1 N. E. – Foram substituídas as transcrições fonéticas do original – /xlɛb/ and /dɛrɛvo/ –, por estas não representarem adequadamente o fenómeno da palatalização.]