Parece-me que a afirmação de Miguel Esteves Cardoso não tem de ser tomada à letra e pode ser interpretada não como preceito gramatical, mas, sim, como efeito retórico, com a finalidade de salientar o tema do texto e sugerir que a situação de conflito na Ucrânia afeta tanto o autor como se fosse passada em Portugal. Por outras palavras, se Miguel Esteves Cardoso gosta muito de Portugal e o nome deste país se usa sem artigo definido, então também «Ucrânia» não usa artigo definido, porque se trata de um país a que também não é indiferente. Ou seja, o enunciador, ao querer manifestar solidariedade com os ucranianos, altera a gramática egocentricamente, em função dos seus afetos e emoções, que impõem a sua lei pela frase declarativa.
No entanto, não é de excluir que o autor em causa pretenda transpor para o português uma mudança verificada na associação tradicional do artigo definido the, «o(s), a(s)», a Ukraine, «Ucrânia» – «the Ukaine» (cf. "Ukraine or the Ukraine: Why do some country names have `the´?", artigo publicado no sítio da BBC News em 7/6/2012).1 O artigo definido inglês teria a finalidade de indicar que o nome próprio constituía apenas uma região geográfica sem estatuto político separado, com origem numa expressão do léxico comum; com efeito, Ukraine (como Ucrânia) é adaptação de Ukraina, nome de origem russa ou polaca que significa literalmente «fronteira» (de u, «em» e krai, «borda, margem»; cf. Online Etymology Dictionary). Após a independência deste país, muitos sectores anglófonos consideraram mais adequada a supressão do artigo que, por convenção, se aplica a regiões geográficas, e não a países (a não ser que o país coincida com uma entidade geográfica bem definida; p. ex., «the Maldives», porque as Maldivas constituem um arquipélago – cf. o artigo em referência, da BBC News).
Acontece que a polémica à volta do uso de Ukraine não tem de ser replicada no uso de Ucrânia, porque em português a maior parte dos nomes próprios referentes a Estados independentes e regiões tem artigo definido. As exceções existentes devem-se à conservação de um uso mais antigo: «em Portugal», «em Castela», «em Leão», «em Aragão», «em Angola», «em Moçambique», «em Chipre» (apesar da expansão de «"o" Chipre», uso rejeitado pela norma).2 Deve, portanto, sublinhar-se que em português o nome próprio Ucrânia ocorre sempre com artigo definido, como a maior parte dos nomes de países.
É verdade que o padre António Vieira (1608-1697) escrevia «as duas províncias de Ucrânia e Podólia» (Cartas in Corpus do Português), sem artigo definido (hoje diz-se «a Ucrânia e a Podólia»), mas no século XVII o uso do artigo definido com nomes próprios de países e regiões (ou corónimos) ainda não tinha estabilizado, e muitos nomes desse tipo, hoje sistematicamente empregados com artigo definido, ocorriam sem ele, como o próprio Vieira pode ilustrar (idem):
«Não sei quando há-de chegar uma frota que nos diga quando acabarão de ter fim as esperanças, com que, tantos anos há, nos tem alvoroçado e suspensos. As do casamento de Alemanha não falta quem cuide que, depois de estar efeituado, nos não livre de novos empenhos [...].»
Mas note-se que, já no século XX, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, no artigo que dedica a este país, apresenta sempre Ucrânia com artigo definido quando se trata de ocorrências em frase:
«A Ucrânia tem clima relativamente temperado [...].»
Mais recentemente, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, regista e define ucraniano como «da Ucrânia», numa definição cuja textualização apresenta também artigo definido.
1 Agradeço a Luciano Eduardo de Oliveira a chamada de atenção para este artigo.
2 Mantêm-se oscilações, quando certos nomes de países e continentes ocorrem com preposição: «em/na Espanha», «em/na França», «em/na Itália», «em/na Inglaterra», «em/na África» (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa. 1984. pág. 229).