Um texto que evidencia a riqueza linguística fruto do convívio da língua portuguesa com as línguas naturais (indígenas) dos países africanos e do Brasil, retirado do livro Milagrário Pessoal, de José Eduardo Agualusa.
(...) Questionado sobre qual a sua relação com o português e o quimbundo, Mário Pinto de Andrade costumava explicar que, quando criança, o português era a língua de casa e o quimbundo o idioma de quintal. No conforto burguês da sala de estar — e reparem na expressão «sala de estar», não «sala de ser» —, falava-se apenas português. No quintal, com os empregados e os amigos, utilizava-se o quimbundo. Portanto, Mário era lusófono na sala de estar, ao passo que no quintal se achava banto, ou quase banto. (...)
Em Luanda, no Dundo, na Chibia, os quintais foram desde sempre espaços amáveis de convívio e de permuta. Organizavam-se longos e alegres almoços de sábado à sombra refrescante de mangueiras e mulembeiras (...)
Mário Pinto de Andrade, porém, esqueceu-se de acrescentar que nos quintais não se falava apenas o quimbundo. Nos quintais, em Luanda, o quimbundo misturava-se com o português. Também no Brasil o quintal foi durante séculos o lugar onde África repousava do esforço escravo. Ali se contavam histórias, cultuavam ancestrais e orixás, e se festejava a vida. Em Salvador, no Recife, São Luís do Maranhão, Ouro Preto ou no Rio de Janeiro a nossa língua convivia com os idiomas indígenas e africanos, e era por eles namorada e ampliada. (...)
in Milagrário Pessoal, Lisboa, D. Quixote, 2010, pp. 125-126. Título da responsabilidade do Ciberdúvidas (manteve-se a grafia da fonte utilizada).