Trata-se de uma sinalefa (transformação de duas sílabas numa)1, em termos genéricos – mais concretamente, é uma contração (crase) do pronome a e a da vogal da preposição em.
O primeiro verso deverá, portanto, entender-se assim:
(i) Deus nom mi a mostre, que a em poder tem = Deus não ma mostre, que a tem em poder
Em (i) há, portanto, uma crase por inversão da construção verbal: «tem em poder» > «em poder tem».
Esta crase de um a como morfema autónomo ou como terminação de palavra tem chamado a atenção dos filólogos, pois ela conta com algumas ocorrências no Cancioneiro da Ajuda, o mais antigo (começos do século XIV) dos manuscritos que atestam o corpus das cantigas medievais. No projeto em linha Universo Cantigas (consultado em 08/11/2019), por exemplo, dedica-se precisamente um comentário sobre este tipo de crase:
«Neste verso aparece a primeira ocorrencia da preposición en [= em] nunha crase coa voz [= vocábulo] anterior (habitualmente coita e dia), tal como se rexistra esporadicamente no corpus; en calquera caso, esta crase ten unha maior presenza no Cancioneiro da Ajuda, que nalgúns casos a presenta fronte a B [Cancioneiro da Biblioteca Nacional, conservado em Lisboa], que mantén a integridade de en [...] ou que, alternativamente, omite a preposición [...].»
Transcreve-se a cantiga na íntegra, conforme a edição disponível nas páginas do sítio eletrónico Cantigas Medievais Galego-Portuguesas (consultado em 08/11/2019) :
A mia senhor, que mui de coraçom
eu amei sempre des quando a vi,
pero me vem por ela mal des i,
é tam bõa, que Deus nom mi perdom,
se eu querria no mundo viver
por lhe nom querer bem nen'a veer.
Pero dela nom atendo outro bem,
ergo vee-la mentr'eu vivo for;
mais porque amo tam boa senhor,
Deus nom mi a mostre, que a 'm poder tem,
se eu querria no mundo viver
por lhe nom querer bem nem a veer.
Porque desejo de vee'los seus
olhos tam muito que nom guarrei já;
e porque antre quantas no mund'há
val tam muito, que nom me valha Deus,
se eu querria no mundo viver
por lhe nom querer bem nem a veer.
1 O termo sinalefa pode denominar genericamente o «fenômeno de transformação de duas sílabas em uma, por elisão, crase ou sinérese» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1.ª edição brasileira, 2001). Convém, no entanto, assinalar que esta definição não é consensual; com efeito, Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, p. 667) chamam «ligação rítmica» a qualquer «contração numa sílaba de duas ou mais vogais em contacto», que pode ser de três tipos, sinalefa, elisão e crase. Com o termo sinalefa, Cunha e Cintra designam a perda de autonomia silábica de uma vogal ao tornar-se uma semivogal para formar ditongo com a vogal seguinte; ex.: «fatigado eu», cujas sílabas «...-do eu» são pronunciadas "dueu" – transcrição fonética: [dwew].