Numa perspetiva gramatical muito simplificada, pode afirmar-se que o pronome pessoal átono nos tem a função de complemento indireto na frase «ele era-nos muito querido». Em estudos mais especializados, dir-se-á que é um dativo* ético, ou seja, trata-se de um pronome ou de uma expressão nominal que marca a entidade (geralmente uma pessoa) que é afetada ou envolvida de alguma forma pelo estado, pela situação ou pela ação a que a frase faz referência.
* O termo dativo faz parte da descrição de línguas que têm declinações, isto é, das línguas que marcam as funções sintáticas atribuídas aos elementos que geralmente complementam ou modificam os verbos por meio de variações (casos) dos substantivos e das palavras que com estes concordam. Por exemplo, considere-se a frase «uma escrava dá uma rosa a uma menina», em que «à menina» é um complemento indireto constituído por um grupo preposicional: numa língua com declinações como o latim, a tradução será «ancilla rosam puellae dat», em que ancilla tem a função de sujeito (caso nominativo), rosam, a função de complemento direto (está no caso acusativo, como indica o sufixo flexional -m), e puellae, a função de complemento indireto (caso dativo, marcado pela terminação -ae). Em português esta classificação não é usada, porque não existem casos; em vez disso, empregam-se preposições, como sucede com os complementos indiretos («a uma menina»). No entanto, é relevante falar em dativo para descrever usos que requeiram uma análise mais aprofundada.
N. E. (24/1/2017) – Entendeu o consulente João de Brito enviar a seguinte observação crítica, que se agradece:
«Continuo a pensar que, por uma questão lógica de base, o complemento indireto não é possível sem a existência, explícita ou implícita, do complemento direto correspondente. Os referidos “estudos mais especializados” parece terem-se apercebido da contradição, mas a alternativa para que apontam é falaciosa porque, no fim de contas, consiste em dizer a mesma coisa… mas em latim. Sendo “ele” o sujeito, a análise formalmente lógica é considerar o “nos” correspondente à expressão “para nós”, desempenhando a função de modificador de frase: para nós, ele era muito querido; ou: ele, para nós, era muito querido; ou: ele era muito querido, para nós. Se, entretanto, mergulharmos mais profundamente na semântica, veremos que a expressividade daquele “nos”, ali agarradinho ao núcleo do predicado, vai muito além da análise puramente formal. Ao jeito de muitas outras expressões (“Saíste-nos cá um traste.” “ Fomo-nos a eles com tudo.”…), ele modifica mais direta e intimamente o núcleo do predicado do que o conjunto da frase. Um pouco como nos casos de “ir a pé” ou “ ir de carro”, mas com uma diferença essencial: enquanto entre estas expressões há uma mudança de sentido do núcleo, no nosso caso, há apenas um reforço do mesmo. Daí, eu ter aprendido, na escola e há mais de meio século, a classificar aquele “nos” como partícula de realce. Complemento indireto é que não. Mesmo eticamente disfarçado de dativo latino. Aliás, se fôssemos por aí, encontraríamos mais facilmente o ablativo.»
Resposta do consultor:
«Sem contestar a definição que João de Brito dá do conceito de complemento indireto e a sua adequação teórica e descritiva, certamente defensáveis na perspetiva que ele tem vindo a expor noutros comentários (ver, por exemplo, aqui), gostaria, de lembrar, no entanto, que não é essa a conceptualização subjacente ao termo complemento indireto tal como este tem sido definido em Portugal, nas terminologias gramaticais destinadas aos ensinos básico e secundário. Com efeito, nem as gramáticas que aplicam a terminologia tradicional ou a Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 (NGP 1967) nem o vigente Dicionário Terminológico (DT), de 2009, impõem que a definição de um complemento direto pressuponha sempre a de um complemento indireto:
DT:
«Complemento indirecto
Complemento seleccionado pelo verbo, que tem a forma de grupo preposicional e pode ser substituído pelo pronome pessoal na sua forma dativa ("lhe" / "lhes") (i-iii).
(i) O Pedro deu uma prenda [aos pais].
O Pedro deu-[lhes] uma prenda.
(ii) O Pedro telefonou [ao médico de que lhe falei].
O Pedro telefonou-[lhe].
(iii) O Pedro telefonou [ao médico amigo da minha mãe].
O Pedro telefonou-[lhe].»
No caso do DT, vemos que o verbo dar seleciona um complemento direto e indireto, mas já o verbo telefonar, que é transitivo indireto, apenas ocorre com complemento indireto.
Quanto ao termo dativo, não será este de adequação indiscutível, mas convém assinalar o seu uso em gramáticas especializadas, como é o caso recente da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 1180), a qual refere o dativo de posse e o dativo ético como complementos indiretos não selecionados, muito embora conceda que «[e]stritamente falando [...], nestes casos, o sintagma preposicional introduzido pela preposição a e o pronome clítico não são [...] "complementos" [...]», para logo a seguir acrescentar: «No entanto, visto que a forma pronominal que estes constituintes assumem é a dativa (daí o seu nome), referimo-nos a estes casos como sendo também "complemento indiretos", no que seguimos a tradição gramatical».
Finalmente, sobre a classificação do pronome pessoal lhe como partícula de realce, não aparece este pronome classificado como tal nas gramáticas tradicionais de que disponho. Não afirmo que o referido pronome não possa ser assim designado; o que digo é que não tem sido hábito aplicar o termo «partícula de realce» (ou «expressão de realce», conforme a fixação do termo da NGP 1967) aos usos pronominais que, noutras gramáticas, são designados como dativo ético ou de posse.
Compreendo os argumentos do consulente para não concordar com a terminologia e a categorização associada – em que se baseia a classificação proposta na resposta. Mas é também preciso sublinhar que essa terminologia é por enquanto aceite nos estudos gramaticais, pelo que é, portanto, legítima a aplicação que aqui se fez dos termos complemento indireto e dativo.
Um última observação: quando João de Brito fala de ablativo, penso que quererá referir-se à chamada dêixis e aos marcadores discursivos, porque os exemplos que dá marcam a situação de comunicação (caso de cá) e o envolvimento do enunciador no estado de coisas (caso de -nos") referido pelo enunciado. Mas nada disto exclui a noção de dativo (e, sobretudo,a de dativo ético) – muito pelo contrário –, porque esta é uma categoria sintático-semântica relacionada com a representação e a interação discursivas.»