Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na sequência de frases «O racismo é um problema social que afeta a saúde mental e física das pessoas. Ele pode ser considerado uma doença social porque causa exclusão, desigualdade, violência e sofrimento», a expressão «doença social» é sempre interpretada como uma metáfora?

Gostaria de entender se, do ponto de vista linguístico, há alguma possibilidade de essa frase ser interpretada literalmente ou se a metáfora é inevitável, mesmo considerando o contexto explicativo sobre os impactos do racismo.

Agradeço a ajuda!

Resposta:

Centremo-nos nos sentidos atribuídos à palavra doença. No Dicionário Houaiss, vemos que o termo doença tem, entre outros, os seguintes sentidos:

«1. alteração biológica do estado de saúde de um ser (homem, animal, etc.) manifestada por um conjunto de sintomas percetíveis ou não; enfermidade; mal; moléstia
2. por extensão: alteração do estado de espírito ou do ânimo de um ser
3. fig.: devoção excessiva; mania; obsessão; vício»

Confrontando as aceções 2 e 3, poderemos concluir que a palavra pode surgir em contextos que não sejam especificamente relacionados com alterações biológicas, sem que, todavia, esse sentido seja obrigatoriamente interpretado como metafórico, pois a metáfora está, habitualmente, inserida nos potenciais sentidos figurados que a palavra adquira.

Importa, porém, realçar que se trata de aspetos relacionados com o valor comunicacional das palavras no qual intervém, de forma relevante, o contexto situacional em que a palavra é utilizada.

De forma a alargar a análise, procurámos ver os sentidos atribuídos ao termo doente e vimos, entre outros:

«2 fig. – que sofre de algum mal físico e/ou moral;
4 fig. – que sofreu um forte abalo (a sociedade anda doente com tanta violência.)»

Se compararmos o sentido 2 do termo doença com o sentido 4 de doente, dir-se-ia que a distinção entre sentido figurado, que aponta para a construção metafórica, e extensão de sentido é ténue. Na aceção 4 de doente destaca-se a abonação: «a sociedade anda doente com tanta violência.», que se aproxima da expressão «doença social» em análise. Se tivermos em conta que essa aceção advém de um sentido figurado, verific...

Pergunta:

No passado domingo [12/01/2025]  no programa Princípio da Incerteza com a dra. Alexandra Leitão, dr. Miguel Macedo e dr. Pacheco Pereira, a primeira intervenção coube à dra. Alexandra Leitão de que cito parte da seguinte passagem:

«E aquilo que motivou, pelo menos a mim, e muita gente a ir à rua foi uma afirmação de defesa de valores, que são os valores e os princípios em que assentam os regimes democráticos e os regimes dos estados de direito e, em especial, estamos em Portugal, o regime que está PLASMADO na constituição em 76, que saiu do 25 de abril, o que é em concreto liberdade, igualdade, não discriminação, dignidade da pessoa humana, tudo isso...»

Ora tenho-me deparado recorrentemente com a utilização «está plasmado» na constituição, na lei n.º..., etc.

Embora perceba o sentido, agradeço o Vosso esclarecimento, já que o significado que aparece no dicionário da Porto Editora não tem nada a ver com o que, como digo, aparece frequentemente enunciado.

Resposta:

A questão em apreço é muito interessante e faz-nos refletir na dinâmica associada à linguagem, sobretudo no que se refere ao sentido das palavras que utilizamos.

Muitas vezes, ao abrirmos o dicionário num determinado verbete, ou entrada, verificamos que, à mesma palavra, são atribuídos diversos sentidos. Até mesmo sentidos figurados, ou seja, que, de alguma forma se distanciam do sentido esperado, ou literal.

A palavra em análise plasmado integra, no exemplo apresentado, uma passiva estativa, em que é usado o verbo estar e o particípio passado (ou o adjetivo correspondente) do verbo plasmar.

Referimos este aspeto, porque numa pesquisa pelo corpus Cetempúblico é possível encontrar frases com o particípio passado, mas também com outras formas verbais e que fogem ao sentido veiculados pelos dicionários consultados.

A alteração de sentido que o consulente regista é, pois, uma alteração que ocorre face aos sentidos previstos do verbo plasmar e não apenas ao seu particípio passado.

No dicionário da Porto Editora, o verbo plasmar é apresentado como transitivo com os seguintes sentidos:

1. modelar em gesso, barro, etc.
2. dar forma a; modelar
3. verbo pronominal: tomar certa forma

Por seu lado, o dicionário Houaiss refere que o verbo plasmar entrou na língua portuguesa no século XIX e não se afasta muito dos sentidos indicados pela Porto Editora. Todavia, apresenta abonações que nos ajudam na interpretação, nem sempre literalmente associada à definição apresentada:

1 – formar ou modelar
2 – da...

Pergunta:

Pergunto-vos se o verbo suplicar admite esta ocorrência:

«Ele suplica QUE queria ver a pessoa DE QUEM ele estaria gostando.»

Aproveito, ainda, para se a expressão «de quem» está correta.

Obrigado.

Resposta:

O verbo suplicar pertence ao grupo de verbos que podem construir-se com uma frase completiva. É um verbo diretivo, que integra atos de fala veiculando um pedido ou uma ordem.

Por seu lado, o verbo querer integra também o grupo de verbos que se constroem com uma frase completiva e pertence ao grupo dos verbos volitivos, que veiculam um desejo ou uma vontade.

Na frase em apreço, o sentido veiculado pelos verbos suplicar e querer impede a construção em que o verbo suplicar, associado a um pedido, seja completado com uma frase ou oração completiva cujo núcleo seja um verbo que transmite uma ideia de vontade.

Assim a sequencia inicial da frase, que repetimos abaixo como (1) não é, a nosso ver, correta:

1 – ?Ele suplica QUE queria ver a pessoa DE QUEM ele estaria gostando.

Parece-nos que o verbo suplicar se pode eliminar:

(1.1) Ele queria ver a pessoa DE QUEM ele estaria gostando.

Por outro lado, poderia manter-se um verbo que veicule uma ideia de pedido que se enquadre melhor no sentido da frase, mas nunca associado ao verbo querer:

(1.2) Ele pediu para ver a pessoa DE QUEM ele estaria gostando.

Embora tenha encontrado no corpus Cetempúblico uma frase em que o verbo suplicar se completa com um complemento oblíquo introduzido por para, não nos parece a melhor opção:

(1.3) ?Ele suplicou para ver a pessoa DE QUEM ele estaria gostando.

Relativamente à expressão «de quem», ela está correta. Quem é um pronome relativo que substitui na frase a expressão «a pessoa...

Pergunta:

Cumprimentos, antes de mais, à equipa do Ciberdúvidas e os votos dum feliz Ano Novo!

Num dos programas de rádio ouvi: "...Carlos Magno (...) colaborou reunificar boa parte do Ocidente Cristão ..." e tropecei em 'colaborar' completando-se directamente com um infinitivo.

Uma pesquisa na internet trouxe mais um exemplo: "quem não colaborou fazer parte, que colabore".

A dúvida é se o verbo 'colaborar' permite reger um infinitivo à maneira de combinar. acordar, etc. ou sempre se exige uma preposição (sic) 'para'? Caso se admita, qual será a função sintáctica desse e quais são, tecnicamente, locuções verbais cultas com o uso de 'colaborar'?

Agradeço.

Resposta:

Gratos pelos votos.

Consultando diversos dicionários de regência verbal, o verbo colaborar surge como transitivo indireto, completando-se com um complemento oblíquo e regendo as preposições:

Com – «O jornalista colabora com duas revistas.»
Em – «O investigador colabora em diversos projetos.»
Para – «O aumento de impostos colaborou para o mau desempenho das empresas» (in Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses).

Surge também como intransitivo

(1) «Só a Câmara Municipal é que ainda não colaborou directamente, mas existem promessas nesse sentido» Cetempúblico

No corpus do Cetempúblico, o verbo surge sempre ou como transitivo indireto com recurso a uma das preposições indicadas acima, ou como intransitivo. Nesta qualidade ocorre por vezes seguido de um verbo no gerúndio:

(2) «…e a PSP da cidade colaborou controlando o trânsito existente nas artérias próximas da ocorrência.» Cetempúblico

Não encontramos nada que nos dê indicação de que o verbo possa ser usado com um infinitivo. Analisando os exemplos que o consulente indica e que repetimos, parece que o verbo está a assumir o significado de decidir que lhe não é, habitualmente, atribuído:

(3) «...Carlos Magno (...) colaborou reunificar boa parte do Ocidente Cristão...»
(3.1) «...Carlos Magno (...) decidiu reunificar boa parte do Ocidente Cristão...»
(4) «…quem não colaborou fazer parte, que colabore…»
((4.1) «…quem decidiu não fazer parte, que colabore…»

Pergunta:

Esta frase está correta?

«Estas t-shirts, que julgo que já estão expostas, são incentivadas pelo Sr. Diretor para uso em saídas ao exterior.»

Resposta:

Tendo em conta o conhecimento que temos do mundo que nos rodeia, não se pode considerar correta a fase em apreço, embora do ponto de vista meramente sintático a sua estrutura corresponda às características do verbo. Mais ajustada é a seguinte formulação:

«O uso destas t-shirts, que julgo que já estão expostas, é incentivado pelo Sr. Diretor para em saídas ao exterior.»

O verbo incentivar pode ser transitivo direto e, por essa razão, admite uma construção passiva. Exemplificamos:

(1) O professor incentiva os alunos.
(1.1) Os alunos são incentivados pelo professor.

A frase (1) ilustra, do ponto de vista semântico, a estrutura básica do verbo incentivar. Pelo seu significado, espera-se que o verbo tenha como sujeito uma entidade passível de decidir, agir e como complemento direto também. Porém, sobretudo em posição de sujeito, não têm que ser exatamente entidades humanas. Podem ser também outras entidades que pressupõem a ação humana como: programa, projeto, uso, participação, empresa.

(2) O programa visa incentivar os jovens criadores.
(3) A empresa incentiva a poupança de energia.

Na frase em apreço, que repetimos como (4) a entidade «t-shirt», que ocupa a posição de sujeito da passiva, não é uma entidade com capacidade de decisão, ou ação, pelo que não pode ser usada como complemento direto de incentivar e, consequentemente, não lhe pode servir de sujeito na passiva.

(4) «Estas t-shirts, que julgo que já estão expostas, são incentivadas pelo Sr. Diretor para uso em saídas ao exterior.»

Para que uma frase possa ser considerada correta, importa que cumpra as características sintáticas – mais orientadas para a estrutura frásica – mas também as semânticas, que remetem para o conhecimento que temos do mundo.

Salvaguardam-s...