A oração «a ver filmes» desempenha a função sintática de complemento oblíquo.
No caso em análise, o verbo passar é usado numa construção que tem o sentido de «gastar tempo a fazer alguma coisa». Neste uso, este verbo é transitivo direto e indireto, tendo a seguinte estrutura: «passar + complemento direto + complemento oblíquo (=preposição a + oração não finita)1.
Assim, a oração não finita «ver filmes» está integrada no interior de um grupo preposicional introduzido pela preposição a. É este grupo preposicional que desempenha a função de complemento oblíquo. Note-se que se trata de um constituinte que não pode ser omitido da frase porque constitui um argumento do verbo, que o exige para completar o seu sentido, o que indica que não se trata de um modificador.
Disponha sempre!
1. Cf. Raposo, Dicionário gramatical de verbos portugueses. Texto editores, p. 594.
Nota (03/03/2025): Convém acrescentar que a análise apresentada decorre do Dicionário Terminológico, documento de apoio ao estudo da gramática no ensino básico e secundário em Portugal. No entanto, a estrutura em questão é muito marginal e pode ter uma análise alternativa em gramáticas mais especializadas. Por exemplo, no quadro da Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013-2020, pp. 1268-1270), é possível a leitura de passar como semiauxiliar aspetual com valor progressivo, que perspetiva a situação na sua fase intermédia. Tratar-se-á de uma construção perifrástica (passar a + infinitivo) que exige, todavia, a presença de um sintagma nominal definido, que expresse a duração do intervalo temporal da duração (no caso, «a tarde»).
N. E. (05/03/2025) – Sobre a nota de 03/03/2025, o consulente Rodrigo de Vasconcelos (Belo Horizonte, Brasil) entendeu enviar um comentário, do qual transcrevemos as seguintes linhas:
«[...] [A] nota da consultora mais confundiu que esclareceu. Citou o valor progressivo do semiauxiliar aspectual passar, na estrutura passar a + infinitivo, de que a Gramática do Português teria tratado nas pp. 1268-1270. No entanto, o item 29.5.5.1 (pp. 1268-1269) da GP cuida do valor progressivo de estar a + infinitivo e de continuar a + infinitivo, e o item 29.5.5.4 (p. 1271), do valor de mudança de situação de passar a + infinitivo, como em "O Pedro passou a ter dores de barriga fortíssimas". Não fala de passar a + infinitivo como semiauxiliar aspectual com valor progressivo.
Em "Queria estar a ver filmes a tarde toda", estar é auxiliar numa estrutura em que a preposição a + infinitivo indica valor progressivo, e "a tarde toda" é modificador, que indica a duração. Em "Queria passar a tarde a ver filmes", passar não é verbo auxiliar, mas verbo pleno, tanto que "a tarde" não é modificador, mas complemento direto de passar, e "a ver filmes" é complemento oblíquo, pelo que não poderia integrar uma construção perifrástica de valor progressivo em que passar seria o verbo auxiliar, e ver, o verbo principal. Basta substituir passar por gastar ou consumir para perceber que não faz sentido a nota da consultora.»
Em resposta, entendeu a consultora Carla Marques fazer as seguintes observações:
«Atentando na primeira análise proposta, e se pensarmos apenas na natureza do verbo passar, vemos que Celso Pedro Luft , no Dicionário Prático de Regência Nominal, o descreve como transitivo direto e indireto em situações em que é usado com o valor de «empregar (tempo)» e dá como exemplos estruturas em que o verbo tem complemento direto e oblíquo: «Passou um mês na praia (na serra, no Rio de Janeiro). Passa o tempo na biblioteca. Passou lá as férias. Passou uma semana fora (de casa)». Situações que são equivalentes à frase em análise.
Pensando agora na análise de base aspetual, note-se que uma gramática não poderá analisar todos os operadores aspetuais, até porque estes valores poderão ser ativados por construções particulares, como parece ser o caso. Neste caso, podemos interpretar que «passar a tarde a ler» ativa o valor aspetual durativo, com particular destaque para o desenvolvimento da situação. A construção coloca a tónica na duração do processo.
Por fim, recordemos o que propõe a Real Academia Espanhola (RAE) para o espanhol, na Nueva Gramática de la Lengua Española (em linha), abordando uma situação similar à da frase em análise (secçao "28.15 Perífrasis de gerundio (IV). Otras perífrasis"):
«28.15h La perífrasis "pasar(se) + gerundio" coincide con "llevar + gerundio" y tener + gerundio en que se aplican también a ella las consideraciones apuntadas en las páginas precedentes en relación con los límites inestables entre estas construcciones y las predicativas. [...] Nótese además que se admiten construcciones como Diana se pasó una semana encerrada y estudiando, en las que se coordinan dos elementos predicativos. [...] También coinciden estas tres perífrasis en que requieren el complemento cuantificativo al que se hizo referencia en los apartados anteriores: Lleva un mes estudiando ~ Se pasó dos días estudiando. Aun así, en el caso de "pasar(se) + gerundio" el grupo nominal suele ser definido, como en La niña se pasa las horas muertas mirando la televisión. El grupo nominal de significación temporal puede designar, por tanto, un período (la noche, la juventud, la vida), no solamente una medida de tiempo (dos horas, tres años):
Solo los que […] nos hemos pasado la vida huyendo, sabemos que más allá solo hay un territorio de tránsito (Barnatán, Frente); En el calabozo de al lado había una presa que se pasaba las horas cantando (Chacón, Voz); Mi papá no trabajaba, se pasaba las tardes tomando mate en el patio (Cortázar, Rayuela); Pidió que le hicieran las pruebas y se pasó la tarde mordiéndose las uñas mientras le entregaban los resultados (Gamboa, Páginas); El jolgorio del día anterior lo había dejado rendido, así que se pasó la noche roncando (Rulfo, Pedro Páramo); Contó que se pasaba el tiempo jugando y bebiendo (Casaccia, Babosa).»
[tradução para português: «28.15h A perífrase "pasar(se) + gerundio" coincide com "llevar + gerundio" e "tener + gerundio" na medida em que se lhe aplicam também as considerações apontadas nas páginas anteriores em relação às fronteiras instáveis entre estas construções e as predicativas. [...] Note-se também que são permitidas construções como Diana se pasó una semana encerrada y estudiando ["Diana passou uma semana fechada e estudando/a estudar] nas quais são coordenados dois elementos predicativos. [...] Estas três perífrases coincidem também no sentido em que exigem o complemento quantificável mencionado nas secções anteriores: Lleva un mes estudiando ~ Se pasó dos días estudiando ["Está estudando/a estudar há um mês" ~ "Passou dois dias estudando/a estudar"]. Mesmo assim, no caso de "pasar(se) + gerúndio", o grupo nominal é geralmente definido, como em La niña se pasa las horas muertas mirando la televisión ["A rapariga passa as horas mortas vendo/a ver televisão"]. O grupo nominal de significado temporal pode, assim, designar um período (la noche, la juventud, la vida) ["a noite", "a juventude", "a vida"], e não apenas uma medida de tempo (dos horas, tres años) ["duas horas", "três anos"]:
Solo los que […] nos hemos pasado la vida huyendo, sabemos que más allá solo hay un territorio de tránsito (Barnatán, Frente); En el calabozo de al lado había una presa que se pasaba las horas cantando (Chacón, Voz); Mi papá no trabajaba, se pasaba las tardes tomando mate en el patio (Cortázar, Rayuela); Pidió que le hicieran las pruebas y se pasó la tarde mordiéndose las uñas mientras le entregaban los resultados (Gamboa, Páginas); El jolgorio del día anterior lo había dejado rendido, así que se pasó la noche roncando (Rulfo, Pedro Páramo); Contó que se pasaba el tiempo jugando y bebiendo (Casaccia, Babosa).»]
Sublinhe-se que na referida gramática da RAE se fala dos «limites instáveis entre estas construções e as predicativas» («los límites inestables entre estas construcciones y las predicativas»).