« (...) A debilidade, a fragilidade ou o autêntico "estado de necessidade" do visado, alimentados por condições de discricionariedade no acesso à carreira e nos mecanismos de promoção (e.g. avaliações de desempenho e concursos), de precariedade do vínculo laboral, de necessidade de garantir a subsistência própria e de dependentes, entre outros, constituem terreno fértil para o cultivo do assédio moral. (...) »
Surgiram nas últimas semanas artigos de opinião originados pelas denúncias de assédio na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Destaco o de 23 de maio, "Assédio, poder e sistemas de oportunidade", de Carlos Gouveia, linguista como eu, que, além de esclarecer a distinção entre «assédio sexual» e «assédio moral», dá conta de situações de assédio moral na universidade portuguesa. Porque, segundo o autor, muitos casos de assédio moral «nem sequer são tomados como tal» e porque, de acordo com Fernanda Peralta, «o assédio não existe quando ninguém pergunta», contribuamos para «chamar os bois pelos nomes», i.e., falemos de assédio.
Os dicionários de língua portuguesa fornecem como primeiras aceções de assediar e assédio as referentes à esfera militar – e.g. em Houaiss, assediar (1.ª atestação, 1679) é «estabelecer cerco para impor sujeição a determinado espaço territorial» e assédio (1548) é a operação militar com esse fim. É como 2.ª aceção de assédio que surge a definida como «insistência impertinente, perseguição, sugestão ou pretensão constantes em relação a alguém». Alguns dicionários especificam «assédio sexual», mas só na Infopédia encontrei a distinção entre ele e o assédio moral, definido como «pressão psicológica exercida sobre uma pessoa, de forma repetida e prolongada, geralmente por alguém em posição de poder ou superioridade». A etimologia dos termos é dada como controversa; a consulta de dicionários históricos de outras línguas românicas poderá ajudar a entender a sua evolução desde o étimo latino.
A Constituição da República Portuguesa, no art.º 25.º (Direito à integridade pessoal), determina que: «1. A integridade moral e física das pessoas é inviolável. 2. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos», mas é o art.º 29.º do Código do Trabalho (Lei n.º 7/2009), que proíbe a prática de assédio e o define como: «2. (...) o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.»
Existe abundante literatura jurídica sobre as características da situação de assédio moral (mobbing), das quais se destacam: o caráter repetitivo e prolongado da prática, os objetivos de afetar a dignidade do visado, gangrenar a sua integridade moral e física, corroer-lhe a capacidade de resistência e levá-lo a "quebrar" e a ceder, a abandonar o posto de trabalho. A debilidade, a fragilidade ou o autêntico "estado de necessidade" do visado, alimentados por condições de discricionariedade no acesso à carreira e nos mecanismos de promoção (e.g. avaliações de desempenho e concursos), de precariedade do vínculo laboral, de necessidade de garantir a subsistência própria e de dependentes, entre outros, constituem terreno fértil para o cultivo do assédio moral.
Quem conhece as condições laborais da maioria dos investigadores e docentes universitários portugueses, alicerçadas nos seus estatutos de carreira e reforçadas pela legislação avulsa que visa promover a insegurança e a precariedade no trabalho e pela discricionariedade permitida pelo Regimento Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), sabe bem que, por estas bandas, o assédio só não existe porque ninguém pergunta e enquanto ninguém o fizer.
Artigo de opinião publicado no Diário de Notícias de 6 de junho de 2022.