« (...) Dadas as condições de trabalho e o atavismo das estruturas de poder universitário, o assédio só não existe enquanto não se falar dele. (...)»
Teve lugar a 27 de fevereiro p.p., o encontro Assédio na ULisboa: conceitos, causas, intervenientes, organizado pelo Movimento U; dos seus resultados, será elaborado relatório. No encontro participaram representantes da sociedade civil – sindicatos, Comissão para a Igualdade no Trabalho e na Empresa (CITE) -, associações representativas de diferentes corpos da universidade, assim como docentes, investigadores, bolseiros e funcionários.
O assédio na ULisboa [Universidade de Lisboa] foi notícia no primeiro semestre de 2022, quando, devido a denúncias de assédio a estudantes da Faculdade de Direito, o Conselho Pedagógico abriu um canal que, em 11 dias, recebeu 70 denúncias de assédio moral, sexual, práticas discriminatórias de sexismo, xenofobia, racismo e homofobia. Como resultado, um docente visado foi afastado e foi aberto processo disciplinar ao docente que sugeriu a abertura do canal de denúncia, processo arquivado em novembro. O Reitor desvalorizou esta e outras situações, em entrevista ao Público (22-05-2022), por se tratar de um «problema transversal à sociedade portuguesa» e por tais situações terem de ser «configuráveis com a lei», para se poder agir. A seguir, foi lançado um espesso manto de silêncio sobre o assunto, como sói acontecer, na linha do que a Conferência Episcopal Portuguesa parece pretender fazer relativamente aos casos de abuso sexual de menores na Igreja Católica.
Durante o evento, contrariando a reitoral desvalorização, foram apresentados resultados preliminares de um estudo sobre Assédio laboral e mobbing no universo dos docentes e investigadores da Universidade de Lisboa, sucintamente noticiado. De acordo com dados recolhidos até então por inquérito (ainda em curso), mais de metade dos professores afirma ter sido alvo de assédio laboral e mais de 20% admitem tê-lo sido muitas vezes. A prevalência do assédio surpreende mesmo os que andam atentos ao assunto.
Aquilo a que se pode chamar «prática de assédio» conjuga uma série de comportamentos (e.g. abuso, perseguição, insultos, difamação, destruição da confiança e do amor próprio, culpabilização da vítima, agressões físicas e sexuais, retaliações sobre a vítima e pessoas próximas) tão desprezíveis que o termo (do latim obsidiu –, pelo italiano assedio) chega a parecer demasiado frágil para tanta carga. As práticas de assédio estão tão arraigadas na sociedade portuguesa (fruto de regimes autoritários, caracterizados por silenciamento, falta de transparência, impunidade dos poderosos) que demoram a ser identificadas como tal pelas vítimas. No caso das mulheres, tudo isto é intensificado pela questão sexual e pelo machismo imperante na sociedade, que, ao invés de diminuir, tem vindo a ser incrementado pelo ataque generalizado aos direitos dos trabalhadores e dos cidadãos. O Regimento Jurídico das Instituições do Ensino Superior, em discussão com dez anos de atraso, abriu a porta ao fim da gestão democrática das escolas, acabando com a eleição direta dos seus órgãos, anulando a representatividade dos corpos constitutivos e permitindo o surgimento de uma "elite" gestionária que se sente à vontade para exercer o poder como entende; a par disto, a precariedade laboral passou a ser a norma na universidade empresarializada; em consequência, as situações de assédio multiplicam-se.
A ULisboa não está, infelizmente, sozinha neste ranking; as demais instituições não são imunes a esta doença. Como afirmei em crónica anterior, dadas as condições de trabalho e o atavismo das estruturas de poder universitário, o assédio só não existe enquanto não se falar dele. O assédio é vivido em silêncio pelas suas vítimas, sistematicamente ameaçadas e isoladas pelos assediadores, que assim as fragilizam e alimentam os seus sentimentos de culpa, incapacidade e irrelevância. O silêncio, além de conferir invisibilidade aos abusos, torna o assédio uma questão pessoal, passível de retaliação se denunciada, difícil de provar e de combater, impune para os seus perpetradores.
O assédio corrói, destrói, mata. É urgente, é imprescindível denunciá-lo, estudá-lo, descrevê-lo, dá-lo a conhecer, mostrá-lo como o cancro social que efetivamente é.
Cf. Como é que se diz “Me Too” em português? + Manual de sobrevivência para vítimas de assédio
Artigo de opinião da autoria da linguista e professora universitária portuguesa Margarita Correia, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias de 6 de março de 2023.