«[...] O assédio na Universidade é de espectro largo e em alguns casos de assédio moral corresponde ao sentido da palavra no discurso militar, i. e., o que verdadeiramente o que se faz é cercar, sitiar. São casos de perseguição que duram, muitos deles, anos a fio. [...]»
É de um linguista britânico a célebre frase “conhecemos uma palavra pela companhia que mantém”, com a qual sumariava, na identificação do significado de uma palavra, a importância das palavras que mais vezes com ela ocorrem no discurso. Vem isto a propósito de assédio e universidade, duas palavras que têm tantas vezes aparecido juntas nos textos dos media nas últimas semanas. Mas nesses textos, que palavra tem ocorrido com a outra? Tem sido universidade que tem ocorrido com assédio ou assédio é que tem ocorrido com universidade? De um ponto de vista mediático, a palavra que gerou a ocorrência da outra terá sido assédio, pois essa foi a palavra que motivou tudo o que a propósito se escreveu. A associação de universidade a assédio é circunstancial, isto é, não tem função definidora, como assédio, tem sobretudo função modificadora, ajudando na definição do tipo de assédio: assédio na universidade. Ora, acontece que as palavras não são apenas palavras, formas, são também conceitos. E o conceito que está por detrás da expressão assédio na universidade é tudo menos um conceito simples, único e inequívoco.
Sem querer minimizar o valor da discussão gerada, ou das queixas apresentadas sobretudo na Universidade de Lisboa, mas também em outras universidades do país, diria que as situações reportadas não são as que mais identificam o assédio que existe na universidade. Não há dúvida de que existe assédio na universidade e que muito é de natureza sexual. Mas diria que o assédio que mais persiste na universidade portuguesa é o assédio moral. Em caso e noutro, moral e sexual, o que temos é o exercício do poder discriminatório sobre outrem, seja favorecendo alguém, por troca de bens e/ou serviços, seja também prejudicando alguém, por criação de dificuldades no acesso a bens e/ou serviços.
Em excelente artigo publicado no Diário de Notícias de 5 do corrente [05/05/2022], Fernanda Câncio chama a atenção para o facto de a Universidade de Lisboa ter aprovado em 2015 um código de conduta que afirma o assédio como uma conduta que o viola, mas que em momento algum providencia uma definição de assédio. A própria Fernanda Câncio não distingue no seu artigo a tipologia de assédio e refere como exemplos condenáveis casos que não são de assédio sexual, como os que vieram à tona na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; no exemplo que refere, de professores que, na sala de aula, chamam burros aos seus alunos, estamos perante assédio moral.
São numerosos os casos de assédio moral que podem ser referidos. Muitos deles nem sequer são tomados como tal por quem é dele objeto ou, mais penoso, por quem exerce o poder do assédio. Os insultos aos alunos são comuns, mas comuns são também os casos de impedimento de escolhas de carreira ou de área científica – Vai escolher x para orientador(a) de dissertação/ tese? Não faça isso. É incompetente. Venha trabalhar comigo –, ou, mais grave ainda, os casos de favorecimento em concursos de acesso às diversas categorias da carreira académica. Uma significativa parte desses concursos viola a lei, seja por restrição de possibilidades de acesso, favorecendo um oponente, seja por discriminação de outros, impedindo-os de concorrer. São os chamados concursos com fotografia, ou, numa leitura mais negra da realidade, os concursos com NIF. O assédio na Universidade é de espectro largo e em alguns casos de assédio moral corresponde ao sentido que a palavra tem no discurso militar, i. e., são casos em que verdadeiramente o que se faz é cercar, sitiar. São casos de perseguição que duram, muitos deles, anos a fio. Note-se também que, seja na sua dimensão sexual seja na sua dimensão moral, o assédio nunca é unidimensional e nunca é unipessoal. Por exemplo, fundado num princípio de favorecimento, o assédio sexual não se restringe ou confina a essa troca ou imposição sexual, havendo outras vítimas, neste caso de assédio moral, que são prejudicadas, e por vezes perseguidas, como resultado do favorecimento da vítima inicial.
O assédio na Universidade é de espectro largo e em alguns casos de assédio moral corresponde ao sentido da palavra no discurso militar, i. e., o que verdadeiramente o que se faz é cercar, sitiar. São casos de perseguição que duram, muitos deles, anos a fio.
Tal como existe na universidade, o assédio resulta de sistemas de oportunidade e de acesso fundados numa cultura de medo, de ataque à autoestima da vítima e do seu reconhecimento de impossibilidades de prossecução de caminhos de carreira livres, dignificantes e gratificantes.
Nos últimos 20 anos as mulheres correspondem, em média, a cerca de 60% dos diplomados pelo ensino superior publico (57,6% em 2020); porém, as mulheres docentes no ensino superior público correspondem apenas, em média, nos mesmos 20 anos, a cerca de 43% dos docentes (45,6% em 2020, segundo a Pordata). A cultura universitária continua masculina e machista, como se depreende desta não correlação entre licenciados e docentes, discentes e docentes, do ensino superior. E esta cultura continua permeável ao favoritismo; ou melhor, ao nepotismo, favorecendo amigos e clientes, em detrimento de pessoas mais qualificadas. A motivação do nepotismo pode envolver diferentes dimensões: institucional (favorecimento de candidatos internos em detrimento de externos mais bem qualificados) ou científica (favorecimento de alguém de uma área científica em detrimento de uma de outra área, contra as necessidades da escola e a qualidade de outros candidatos). Mas pode também ter uma dimensão sexual e de género, como nos casos reportados publicamente e em todos os outros que urge denunciar.
Na universidade, nepotismo e assédio são duas faces da mesma realidade.
Sim, denunciem-se os casos que o movimento Me too tem contribuído para publicitar, que são sobretudo casos de assédio sexual da mulher por parte do homem e, na universidade, fundamentalmente de professores sobre alunas (e não só). Mas não se rasurem os casos de assédio moral, sobre os quais, lamentavelmente, assenta o quotidiano da instituição universitária portuguesa.
Artigo do professor universitário Carlos A. M. Gouveia , transcrito, com a devida vénia, da edição digital do jornal Público, de 23 de maio de 2022.