« (...) À língua portuguesa não basta ser uma das mais faladas do mundo se os seus falantes não puderem chamar-lhe sua. (...)»
Revisito com frequência a obra de José Saramago, pelo gosto de o (re)descobrir, como se regressasse à casa primordial, sempre familiar e, ao mesmo tempo, sempre renovada e acolhedora. Uso excertos das suas obras nas minhas aulas, para mostrar os diferentes níveis de compreensão e análise que um texto pode conter: de cada vez que retiramos uma casca, há outra por baixo, sempre mais tenra e suculenta, de sabor mais delicado. E para mim os livros de Saramago têm intermináveis camadas. Ainda esta semana, usei um excerto de A Jangada de Pedra, com o objetivo de demonstrar que, para obter uma cabal compreensão de um texto, não basta conhecer bem a língua escrita e dominar a estrutura do texto, mas é também imprescindível que a informação que ele nos traz possa dialogar com o nosso conhecimento prévio do mundo e encontrar repercussão. É por isso que pessoas mais cultas gostam mais de ler e é também por isso que os textos de Saramago merecem sempre ser revisitados.
Celebra-se esta semana, a 5 de maio, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, pelo que, desde há alguns dias, as redes sociais de instituições com responsabilidades na difusão internacional da língua estão cheias de mensagens laudatórias – e.g. a inevitável «A minha pátria é a língua portuguesa» (de Bernardo Soares, tão vazia, de tanto ser citada, quanto inadequada neste contexto), os dados demográficos atuais e os previstos para o final do século, ou o facto de o português ser a língua mais falada no Hemisfério Sul. E é esta uma última referência que me faz voltar a Jangada de Pedra, romance publicado em 1986, ano em que Portugal e Espanha aderiram à então Comunidade Económica Europeia, no qual Saramago nos convida a repensar as raízes e a filiação cultural dos povos ibéricos, divididos entre uma então toda recém-vestida europeidade, virada a norte, e a história que construímos, levando a Europa para sul, sobretudo para Áfricas e Américas. No romance, a jangada-península, após rumar a ocidente, caiu, «sim, não há outra maneira de o dizer, mas para sul, porque é assim que dividimos o planisfério em alto e baixo, em superior e inferior, em branco e preto, figuradamente falando, ainda que devesse causar certo espanto não usarem os países abaixo do equador mapas ao contrário, que justiceiramente dessem do mundo a imagem complementar que falta».
É inevitável para mim pensar que a língua portuguesa é, de facto, a nossa jangada, o maior contributo que levámos ao mundo. E, como a jangada de pedra, equidistante da América e da África (e também da Ásia), a nossa língua cai cada vez mais em direção a sul e que tudo tem para enriquecer os que a falam e ser um instrumento cada vez mais poderoso de diálogo e comunicação. À língua portuguesa não lhe basta, porém, ter muitos milhões de falantes, ou, melhor dizendo, os países que a tomaram como sua serem demograficamente jovens e cheios de vitalidade. À língua portuguesa não basta ser uma das mais faladas do mundo se os seus falantes não puderem chamar-lhe sua.
Para ser verdadeiramente grande, a língua portuguesa deve crescer sem desertificar tudo à sua volta, criando terreno fértil para habitar com outras línguas, tornar-se cada vez mais mestiça, multicolorida e multifacetada, mais rica, mais fortalecida pelos contributos das línguas e das culturas que com ela se irmanam. Da língua portuguesa esperamos que seja a dos mapas ao contrário que nos faltam, que justiceiramente nos traga do mundo a sua imagem complementar.
Viva a língua portuguesa!
Crónica publicada no Diário de Notícias de 2 de maio de 2022.