«(...) Na altura em que discutimos e aprovámos este Acordo, tínhamos admitido algum aperfeiçoamento. É como a legislação – há sempre alguma incongruência, alguma dificuldade, mas isso pode ser resolvido através do Vocabulário Ortográfico Comum, que está a ser elaborado pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa (...), organismo da CPLP encarregado da política da língua. [Por isso,] não faz sentido estar a tomar iniciativas unilaterais que não sejam através deste instituto. (...)»
Os filhos estão sempre a dizer-lhe para se deixar disso, mas João Malaca Casteleiro acredita que tem de defender a sua “dama”. A sua “dama”, como lhe chama, é o Acordo Ortográfico de 1990, que ajudou a construir (foi ele, aliás, o principal responsável da Academia de Ciências de Lisboa pela elaboração do documento e autor do anexo de seis páginas que o encerra) e que tanta polémica tem causado.
No final do passado mês de janeiro, a Academia de Ciências de Lisboa divulgou um documento intitulado Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico, onde são sugeridas alterações a algumas das regras do Acordo Ortográfico. Entre elas incluem-se o regresso de algumas consoantes mudas, do acento agudo em palavras acentuadas na penúltima sílaba (e com pronúncia e grafia iguais), do acento circunflexo em vocábulos homógrafos, isto é, que se escrevem da mesma forma. O documento foi discutido na semana passada na Comissão Parlamentar da Cultura, onde foi ouvido o atual presidente da Academia, Artur Anselmo, a pedido do Bloco de Esquerda.
Apesar de muitos acreditarem que as Sugestões da Academia de Ciências de Lisboa poderão vir a desencadear um processo de alteração do chamado Novo Acordo Ortográfico, o ministro dos Negócios Estrangeiros [Augusto Santos Silva] já fez questão de dizer que isso está fora de questão. «A nossa posição é que devemos aguardar serenamente para que o processo de ratificação seja concluído para que o Acordo Ortográfico possa entrar em vigor em todos os países que o assinaram e o aprovaram», disse Augusto Santos Silva, explicando que este é um «acordo internacional» a que o Estado português está obrigado.
As declarações de Santos Silva levaram Manuel Alegre, que também esteve presente na audição da Comissão Parlamentar da Cultura, a acusá-lo de ser «arrogante», numa das muitas polémicas que o Acordo Ortográfico de 1990 já provocou e que João Malaca Casteleiro admite não conseguir compreender. É que, na altura da sua aprovação, a contestação foi pouca. Os governos de Portugal, Brasil e dos outros países de língua portuguesa mostraram-se de acordo, e os linguistas de cá e de lá também.
Passados quase 30 anos, o linguista afirma que nunca pensou que ainda estaria a falar do mesmo assunto. Apesar disso, sente que tem de o fazer para que todos percebam o que estava e está em causa, que nada foi feito ao acaso e que o Novo Acordo Ortográfico, tal como é, foi a melhor solução final possível. Apesar de defender com unhas e dentes o acordo que ajudou a criar, o linguista não põe de lado eventuais aperfeiçoamentos
Não põe de lado eventuais aperfeiçoamentos, mas acredita que nada deve ser alterado até que entre em vigor em todos os países de língua portuguesa (falta Angola). Tece fortes críticas à Academia de Ciências, que acredita que está a desrespeitar a memória da própria instituição, uma das principais responsáveis pelo acordo hoje vigente, e ao seu atual presidente, que quer levar a cabo “um desmantelamento” do Acordo.
Porque é que houve a necessidade de fazer um novo Acordo Ortográfico?
Fundamentalmente porque havia duas ortografias oficiais para a língua portuguesa, a brasileira e a portuguesa. Do ponto de vista da promoção internacional da língua, era prejudicial. Numa universidade ou instituição estrangeira onde se ensine o português, qual era a ortografia que se ia ensinar? A de Portugal? A do Brasil? E depois houve outra razão fundamental: em 1975, as colónias portuguesas tornaram-se independentes e adotaram a língua portuguesa como língua oficial. Corríamos o risco, porventura, de se caminhar para sete, oito ortografias diferentes. E repare: a primeira iniciativa do Acordo de 1990 foi tomada pelo Brasil, em 1986. E foi o Presidente da República de então, José Sarney, que era membro da Academia Brasileira de Letras – que sempre com a Academia das Ciências de Lisboa acompanhou este processo da questão ortográfica –, que tomou a iniciativa de promover um grande encontro no Rio de Janeiro (que aconteceu em maio de 1986) para se ver a questão da ortografia. Porque essa questão já vinha de trás.
Porque já tinha havido outras tentativas de acordo.
Em 1975, a Academia das Ciências de Lisboa preparou uma proposta de acordo mas, como aconteceu o 25 de Abril, não houve condições políticas em Portugal para dar andamento a esse processo. Embora se tivessem tomado nessa altura algumas decisões um pouco radicais, como por exemplo a supressão dos acentos [por causa da diferença no seu uso em Portugal e no Brasil]. [Por exemplo], há palavras esdrúxulas e graves que, no Brasil, se acentuam com um acento circunflexo e em Portugal com acento agudo por causa da diferença de timbre das vogais tónicas, como “Antônio”, “gênero”, “fêmur”, do lado de lá, e “António”, “género”, “fémur”, do lado de cá, porque o timbre é aberto. Para resolver esse problema, pensou-se noutra solução – em adotar um acento diferente, que era sempre uma exceção. Por exemplo, o acento grave. Só que, do ponto de vista pedagógico-didático, da aprendizagem da ortografia, era contraproducente. E também temos de pensar nisso.
Houve várias razões que tivemos em conta. Uma delas foi a de os alunos nas escolas fugirem dos acentos como o diabo foge da cruz [risos]! Acentos não é com eles. Depois, a língua oral precede a língua escrita e uma pessoa sabe onde está o acento tónico mesmo sem lá estar o acento grave. [Além disso], estávamos no arranque da informática e os programas de computador eram em inglês e não tinham acentos. Era uma dificuldade. Mas foi um pouco radical essa posição porque ia provocar muitas incompreensões. «Eu vou à secretaria da faculdade». Sem acentos, como é que eu sei que é secretaria, lugar físico, e não secretária, pessoa [encarregada] da secretaria?
Em Portugal houve uma grande oposição e nós compreendemos que era radical porque apresentaram contra-argumentos que tivemos de ter em conta. Tivemos isso em linha de conta e elaborámos então um novo acordo que, em vez de procurar a unificação total e absoluta das duas grafias (uma vez que havia diferenças que se tinham instalado e que era difícil eliminar), adotámos o princípio da dupla grafia. Do lado do Brasil escrevem com acento circunflexo, “Antônio”, “gênero”, “fêmur”, porque articulam com timbre fechado, e do nosso lado com acento agudo. Por outro lado, eles dizem “fato”, “contatar”, “indenização”, e nós dizemos “facto”, “contactar”, “indemnização”. Então ficaram duplas grafias, foi este o princípio.
Nunca tentaram uma unificação total da ortografia?
Dissemos «bom, mais vale conseguirmos a unificação de 98% do léxico do que tentarmos a unificação absoluta, que é inviável». Já se provou pelo passado que é inviável. Não vou agora a 1945, mas houve decisões que se tomaram na altura e que revelaram uma total falta de bom senso porque obrigavam, por exemplo, os brasileiros a suprimirem os acentos circunflexos nestas palavras que mencionei e a pôr lá o acento agudo com este sofisma: o acento agudo não marca propriamente o timbre vogal, se é aberto ou fechado, marca apenas a tónica. Então era uma exceção – nos outros casos marcava o timbre, e aqui não marcava. Isto só para dar um exemplo de incongruências que havia e que se revelaram inviáveis.
Foi por isso que repensámos toda esta questão e a Academia de Ciências de Lisboa (visto que era em Portugal que surgia a maior oposição ao acordo de 1986) resolveu rever tudo e houve o máximo de cuidado. Eu próprio, encarregado pela Academia de Ciências de Lisboa e pela Secretaria de Estado da Cultura, percorri todos os países lusófonos e apresentei um anteprojeto. Elaborámos um anteprojeto que foi enviado pela via diplomática para as entidades responsáveis dos países para que debatessem essa questão e se tornasse mais fácil a aprovação final no encontro de Lisboa. Porque isso não aconteceu em 1986 – defrontámo-nos com uma versão que tinha sido preparada pela Academia Brasileira de Letras e que não tinha sido suficientemente amadurecida e discutida.
E quando é que o Novo Acordo Ortográfico foi aprovado?
Foi aprovado em outubro de 1990 por todos os países de língua portuguesa. Só Timor-Leste, que ainda não era independente, é que não esteve presente, mas depois aderiu em 2004 numa reunião da CPLP. Teve a aprovação política dos ministros e secretários de Estado da Cultura de todos os países em dezembro de 1990. A 12 de dezembro de 1990. Depois, precisava que fosse [ratificado] pelos parlamentos de todos os países para entrar em vigor e previa-se um tempo de transição de três anos mas, infelizmente, esse processo precisava de condução política. O Dr. Pedro Santana Lopes [então secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros do Governo de Cavaco Silva], que se empenhou muito neste processo, demitiu-se em 1992 do Governo, se não estou em erro, e o problema ficou parado. Porque eu ainda fiz uma viagem com ele ao Brasil em 1991 para falarmos com as entidades brasileiras no sentido de apressar a [ratificação] pelo parlamento do Acordo Ortográfico, que só aconteceu depois. E depois, bom, é uma longa história que teve outras peripécias.
Quando foi aprovado, sentiu que havia uma boa receção por parte dos governos lusófonos? Que estavam todos de acordo?
Todos, todos de acordo.
Não houve, portanto, grande oposição?
Quando foi [ratificado] na Assembleia da República de cá, as vozes contra não tiveram grande expressão. Foi aprovado por maioria. Depois é que se insurgiram. Quando se suprimem as consoantes, as pessoas têm saudades das consoantes mudas…
Mas a maioria das pessoas parece não compreender porque é que elas foram suprimidas.
Não compreendem e não leram a nota explicativa. Eu próprio tomei a iniciativa de elaborar uma longa nota explicativa com a justificação das opções tomadas. Essa nota ocupa seis páginas das 18 que o texto do Acordo, no seu conjunto, tem na publicação do "Diário da República" de 23 de agosto de 1991, depois de ter sido [ratificado] pela Assembleia da República e promulgado pelo Presidente da República. Se lessem a nota explicativa, refletissem e ponderassem, viam que havia razões. Vêm dizer que as consoantes mudas são necessárias porque a vogal anterior é aberta e, portanto, se se tira, a consoante fecha. “Direção” [com a tónica no “e”] vai passar a ser “direção” [com a tónica no “ão”]. Temos tantas palavras na língua portuguesa que não têm lá nenhum sinal diacrítico, nenhum acento gráfico, nem nada que indique que a pré-tónica é aberta!
Toda a gente distingue entre “pregar” e “pregar”, de pregar um prego. Ninguém confunde “pregar” e “pregar”! “Sede” e “sede” – não há lá nenhum sinal a marcar a distinção. “Solidamente”, “comodamente”, advérbios [terminados] em “mente” tinham um acento grave antes de 1971. Houve uma iniciativa do Brasil para suprimir esses acentos (eles tinham muitos, por exemplo, “ele” tinha acento circunflexo para distinguir de “l”, a letra) em 1971. Essa reforma foi seguida por Portugal em 1973, que foi quando se suprimiram os acentos graves dos advérbios [terminados] em “mente”.
E em relação ao “pára”? Porque é que se retirou o acento?
As palavras graves em português não têm acento gráfico, a não ser excecionalmente – se terminarem em “n”, por exemplo, como “líquen”, ou se terminarem em “l”, como em “móvel”. Então, porque é que “para” havia de ter acento? “Pelo”, como em “pelo caminho”, não tinha acento, mas “pêlo”, de cabelo”, tinha. “Pélo”, de “pelar”, tinha acento agudo. Não fazia sentido, eram palavras graves. Suprimiu-se os acentos nas palavras deste tipo e foi nesse sentido que também se suprimiu em “para” e “para”. E até com um argumento que ponderámos: é que os nossos alunos nas escolas, como “pára” tinha acento, eles tinham a tendência de pôr assento em “paras”, “paro”.
O contexto diz-nos se é uma preposição ou verbo. «Eu vou para Lisboa», é preposição. «O comboio para na estação», é evidente que só pode ser um verbo. Agora, os “contristas” [os que são contra o novo Acordo Ortográfico] vão à procura de exemplos sofisticados. Quem escreve, se tiver dificuldades e dúvidas, pode procurar evitar a ambiguidade. Não temos capacidade para evitar a ambiguidade? Mas eu, aí, até admito que se venha a colocar o acento em “para”. É um daqueles casos que, enfim, não vale a pena fazer chover no molhado, como se diz.
Há bocado falámos nas consoantes mudas. Porque é que o “h” não desapareceu também?
Olhe que também pensámos nisso. E sabe de quem é que veio a proposta? Foi apresentada no Rio de Janeiro, em 1986, pela Professora Maria Helena da Rocha Pereira. Classicista, muito influenciada pelo latim, pelo grego. O italiano suprimiu o “h” (“uomo” [«homem” em italiano] tem o mesmo étimo e não tem “h”), e ela propôs a sua supressão em português. Mas as reuniões, que eram na Academia Brasileira de Letras, eram abertas à comunicação social e estavam jornalistas presentes. No dia seguinte, apareceu em grandes parangonas nos jornais: «Então os académicos querem tirar o ‘h’ ao homem? Isto é um atentado à virilidade do homem!». Um atentado à virilidade do homem [risos]! «Já não se pode dizer um homem com ‘H’ grande!». Mas podiam dizer um homem com ‘O’ grande [risos].
Como não havia grandes diferenças (havia uma ou outra palavra que os brasileiros escreviam sem “h”), achámos que não valia a pena estar a pegar em armas por uma questão que não levantava dupla grafia. Recuámos um bocado e achámos que não valia a pena estarmos a criar mais uma guerra.
É comum encontrar textos em que se misturam os dois acordos, o novo e o anterior. Parece que as pessoas ainda não perceberam muito bem como é que funcionam estas alterações. Porque é que acha que há tanta confusão?
É curioso, não tenho notado. E estou ligado ao ensino. Começámos por aplicar o acordo no sistema de ensino, nos jardins-escola João de Deus, antes de chegar às instâncias oficiais. Foi logo no ano letivo de 2009/2010 e o Acordo entrou sem problemas de maior porque é mais fácil para as crianças. A nossa ortografia está muito próxima da pronúncia, ao contrário do inglês ou do francês. Como, aliás, o latim. No latim, a maneira de escrever era muito próxima da pronúncia, e é por isso que é um dos princípios que subjaz à ortografia portuguesa. Por um lado, a etimologia, a origem da palavra e, por outro, lado a pronúncia.
Alguns “contristas”, como lhes chama, alegam que ao imporem estas alterações estão a afastar as palavras da sua etimologia.
Ao longo da história da ortografia portuguesa notamos que as palavras foram perdendo consoantes. Por exemplo, “fruto”, etimologicamente, é com “c”. Já se escreveu “fructo”, “fruicto” e “fruto”. “Vitória” também era com “c”. Se havia diferença entre as grafias do lado brasileiro e do lado português por causa das consoantes, o que é que era mais fácil e de maior bom senso? Era obrigarmos os brasileiros a reintroduzir as consoantes que já tinham suprimido há muito tempo, como queria o Acordo de 1945? Na altura, a parte portuguesa conseguiu convencer a parte brasileira a reintroduzir as consoantes só que, quando chegou ao Brasil, [esse acordo] foi desautorizado e não foi aprovado porque era um contrassenso. Não fazia sentido, e essa foi a principal razão para adotarmos o princípio da pronunciação. Se não houvesse essa diferença, com certeza que as consoantes teriam ficado. Além disso, do ponto de vista pedagógico-didático, para as crianças que começam a aprender a ler e a escrever, era mais fácil.
A petição “Cidadãos contra o ‘Acordo Ortográfico’ de 1990” defende que “o critério da pronúncia” gerou “aberrações”.
Uma das aberrações que eles apontam, e que o Dr. Artur Anselmo [presidente da Academia de Ciências de Lisboa] também já mencionou várias vezes, é palavras como “conceção” e “concessão”, que até do ponto de vista gráfico se distingue – uma é com “ç” e outra com dois “ss”. É como “pregar” [de pregar um prego] e “pregar”, no fim de contas – é o contexto que nos diz se é uma ou outra. Mas eles dizem que não, que isso vai lançar confusão e que se criaram grafias que não existiam. Uma das coisas que a Academia [de Ciências] quer restaurar é o “p” em palavras como “conceção” ou “exceção”, que continua a ser pronunciado no Brasil. As crianças que estão a aprender na escola quando virem aquelas palavras vão perguntar: «Então, se eu não leio o ‘p’, porque é que tenho de o escrever?’». «Ah, porque no Brasil se escreve.»
Outra “aberração” é “Egito”, que se escreve sem “p” porque o “p” não se articula. “Egípcio” escreve-se com “p” porque se articula. E já não temos na nossa língua palavras como “cativo” e “captar”? Tem a mesma origem, são da mesma família. “Cativo” não tem “p” porque não se articula, mas “captar”, “captura” são com “p” porque este se articula. Já temos na língua casos desses, [“Egito” e “egípcio”] são apenas mais alguns que agora introduzimos com justificação, com razão de ser. É muito mais simples para uma criança aprender a escrever “Egito”, sem pôr o “p” porque não o articula, e “egípcios” com “p” porque o articula.
Isto geralmente acontece nestas famílias morfológicas. A palavra mais erudita, até menos usual, conserva a consoante, ao passo que a palavra mais usual não conserva.
Mas há quem garanta que pronuncia o “p” de “Egipto”.
Sim, eu tenho alguns alunos que dizem isso, «eu pronuncio o p!». Então eu digo-lhe: «Então, olhe, pronuncia mal!». A grande maioria das pessoas não pronuncia, se formos ver democraticamente. Naqueles casos em que havia uma oscilação muito grande entre articular e não articular, em que havia na norma culta [do português] muita divergência, conservámos a dupla grafia. Como em “característica” e “caraterística”, “sector” e “setor”. Na minha perspetiva, com o tempo a forma que se vai consagrar é a sem consoante, mas se calhar vai levar algum tempo.
O que é que pensa das Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico, divulgadas no final de janeiro pela Academia de Ciências de Lisboa?
Aquilo não procura solucionar estas diferenças. É contraproducente, não tem pés nem cabeça, não respeita os princípios orientadores do Acordo Ortográfico, que estão bem expressos na nota explicativa. Portanto, não tem justificação porque vai lançar mais confusão.
Porque é que só agora, passados quase 30 anos, é que a Academia decidiu avançar com estas sugestões?
Porque tem lá um presidente que tomou esta questão a peito e que anda à procura de protagonismo, mediatismo, e porque é contra. Os outros presidentes não levantaram problema nenhum. E acontece que fizeram uma reforma lá nos estatutos, no regulamento não sei bem do quê da Academia, e agora o presidente é eleito por três anos, porque antes era anualmente e alternadamente. Nos anos pares era Letras, nos anos ímpares era Ciências. Agora não: agora é três anos e ele está agora no segundo ano. Tem até maio do ano próximo para fazer barulho. É uma iniciativa desgarrada, e depois vem aquela gente que não percebe nada de ortografia mas que está agarrada ao passado. O Acordo Ortográfico não foi feito para o passado, foi feito para o futuro. Não é para os que estão no último quartel da vida, como eu, é para os que estão no primeiro quartel da vida, para os jovens, para o futuro da língua portuguesa. Como é em todo o lado. Porque é que em Angola o Acordo Ortográfico não avança? Porque são as pessoas que estão no último quartel da vida que estão contra e que mandam naquele país que não deixam a coisa avançar, porque os jovens, esses, queriam.
É o único país onde o Acordo ainda não entrou completamente em vigor?
Praticamente, é o único país em que está parado. Mas, curiosamente, foi o primeiro país a apoiar financeiramente a elaboração do Vocabulário Ortográfico Comum, que está prometido para maio próximo. Está a ser finalizado.
Não põe de parte eventuais alterações, mas considera que não se devia mexer no Acordo Ortográfico até este ter entrado em vigor em todos os países. Porquê?
Na altura em que discutimos e aprovámos este acordo, tínhamos admitido algum aperfeiçoamento. É como a legislação – há sempre alguma incongruência, alguma dificuldade, mas isso pode ser resolvido através do Vocabulário Ortográfico Comum, que está a ser elaborado pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa. É que neste momento existe um organismo da CPLP, da comunidade de língua portuguesa, que está encarregue da política da língua e não faz sentido estar a tomar iniciativas unilaterais que não sejam através deste instituto. Ora, a Academia está representada neste instituto, onde podia perfeitamente levantar alguns problemas.
Não estou a participar nem estou a acompanhar a questão do Vocabulário Comum – porque a Academia nomeou para lá outro representante –, mas eles fizeram alguns ajustamentos e alterações. Por exemplo, uma aparente incongruência: “cor-de-rosa” e “cor de laranja”. “Cor-de-rosa” é com hífen e “cor de laranja” sem hífen. Isso já vinha de trás – “cor-de-rosa” toda a gente escrevia com hífen, “cor de laranja” era uma formação mais recente. Hoje, acho que devíamos ter tirado os hífenes. Ora, isso pode ser corrigido no Vocabulário Ortográfico Comum. É apenas um exemplo, que há outros. Acho que eles têm feito um bom trabalho, isso está a ser melhorado.
De qualquer modo, o que eu considero é que é descabido neste momento andar a tomar iniciativas unilaterais para modificar [o Acordo Ortográfico]. Porque o que o Professor Artur Anselmo queria era reverter o Acordo, queria voltar à antiga ortografia. Como viu que isso não era viável, agora arranjou um estratagema que é o das sugestões para um aperfeiçoamento. Eu digo que são sugestões para o desmantelamento. Não são sugestões para o aperfeiçoamento, são para o desmantelamento do acordo.
A possibilidade de uma alteração foi afastada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros. Acha que existe alguma hipótese de as sugestões de aperfeiçoamento serem aplicadas?
O Governo foi claro: o Acordo Ortográfico constitui, neste momento, um tratado internacional. Foi aprovado pelos países de língua portuguesa, portanto não pode ser unilateralmente alterado. O ministro dos Negócios Estrangeiros [Augusto Santos Silva] veio logo a público dizer que o Governo não queria alterar nem modificar o Acordo Ortográfico e que, portanto, não aceitava essa iniciativa. É claro que agora já estão a ameaçar levar a petição à Assembleia da República e confrontar os partidos. E ai deles! Que tenham atenção nas próximas eleições autárquicas porque, se não se portarem bem, podem apanhar por tabela! É o que eles querem dizer nas entrelinhas. Realmente, acho isto lamentável… Somos um país pequenino que tem uma língua grande. Desde o tempo de Camões. Quando me lembro dos primeiros versos da dedicatória de Os Lusíadas, que era dedicado ao então Rei D. Sebastião, e que começa assim:
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro.
Isto era para o Império Português, que ia do extremo oriente ao extremo ocidental. Isto era válido, também nessa altura, para a língua portuguesa. O império acabou, mas o “império” da língua portuguesa continua. A língua portuguesa continua. Olhe, no extremo oriente, na China, há 33 universidades em que se ensina português. Antes do termo da administração portuguesa em Macau, havia 3, agora há 33. No Japão há cerca de 30 universidades onde se ensina português e 330 mil falantes, a maioria descendentes de brasileiros. E em Macau, no último ano letivo, havia seis mil alunos nas instituições públicas e privadas a aprender português.
Passou-lhe pela cabeça que o Acordo causaria tanta polémica e que, passados quase 30 anos, ainda estivéssemos aqui a falar dele?
Não, não! Não pensava porque, ao fim de quase 30 anos, acho que é de mais. E depois os “contristas” são sempre os mesmos. Tomam uma iniciativa e logo a seguir, pouco tempo depois, surge outra. Esta petição já não é a primeira e são os mesmos que andam ali. O que é que havemos de fazer? Não há remédio, não há antibiótico.
Parece-lhe que o problema é estarem presos ao passado, como disse ainda há pouco?
Sim, e em boa verdade eles podem escrever como quiserem. Até os jornais que aderiram e adotaram o Acordo Ortográfico, admitem que os colaboradores não o utilizem. A Academia de Ciências, por exemplo, nunca adotou o Acordo Ortográfico.
Isso não é um contrassenso?
Não respeita a memória da própria Academia. Irritei-me lá várias vezes, porque faço parte dessa memória. Na altura, o Acordo Ortográfico foi aprovado sem nenhum problema, com os principais linguistas portugueses a apoiarem a 100%. [Luís Filipe] Lindley Cintra, Herculano de Carvalho, dois grandes linguistas de então, apoiaram inteiramente. As medidas que adotámos no Acordo já tinham sido debatidas num simpósio que houve sobre a língua portuguesa em Coimbra, em 1968, onde se propôs que se suprimissem as consoantes mudas, os acentos. As medidas que foram adotadas em 1986 e depois em 1990 já tinham sido propostas por filólogos e linguistas portugueses, brasileiros e estrangeiros que estavam reunidos [no simpósio].
Então como é que explica esta mudança de posição?
Isto parece que é tudo novo… Quando foi tudo muito refletido e pensado e tem tradição… Na Academia, cada académico escreve como quer. Nas comunicações oficiais, como o presidente é contra, ele escreve sempre na antiga ortografia. Quando comunico ou publico, é sempre com a nova ortografia. E no estrangeiro, onde se ensina português, aderiram bem ao Acordo, sem problemas de maior. Neste momento, voltar atrás seria um atentado ao bom senso porque há milhares de crianças e jovens que já aprenderam de acordo com a nova ortografia, e agora tinham de voltar atrás? Não pode ser, não podemos andar a mudar a ortografia assim de forma ligeira. Qualquer alteração tem de ser muito ponderada, porque afeta muita gente.
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico + Sobre o Acordo Ortográfico de 1990 e o que (não) foi alterado com a nova reforma do português escrito
Entrevista publicada no jornal digital Observador, no dia 13 de janeiro de 2017, tendo-se mantido a norma ortográfica de 1945 do original. As fotografias são também do Observador, de Henrique Casinhas, com os nossos agradecimentos.