« (...) [Um dicionário que] segue todos os absurdos do Acordo Ortográfico (...)»
Pouco menos de quatro meses após a eleição de Ana Salgado para presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa (ILLLP) da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), eis que no dia 13 de Abril foi apresentado, em sessão da Classe de Letras, o prometido novo Dicionário da Academia, agora exclusivamente em formato digital, de acesso gratuito em linha, e baptizado Dicionário da Língua Portuguesa (DLP). Na sessão, transmitida em directo ao longo de quase três horas, elogiou-se o trabalho feito, lembrou-se a história da dicionarística e dos dicionários da ACL e explicaram-se as vantagens das opções tecnológicas que presidiram à concretização do actual dicionário, o primeiro digital da Academia.
Tudo muito bonito. E o resto? Irrazoavelmente feio. Onde a ACL podia ter aproveitado para integrar os tais “aperfeiçoamentos” que ela própria em tempos sugeriu, quase nada mudou. A transposição do antigo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, coordenado por Malaca Casteleiro, baseou-se na adaptação da ortografia de 1945 (nele usada) à de 1990, exceptuando as citações de textos antigos. Com um truque: para cada palavra, usa-se um “ou” que soa algo hipócrita. Por exemplo: «acionar ou accionar (grafia anterior a 1990)». Ou seja, quem preferir a grafia de 1945, esteja à vontade; quem seguir a outra, a do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), siga a palavra em primeiro lugar. Não sendo isto inútil, deixa pelo caminho tudo o que de razoável a Academia propusera como alterações ao dito Acordo Ortográfico.
Com uma singela excepção: as palavras óptica e ótica. Contrariando os disparatados ditames do AO90, óptica passa a referir-se apenas à visão, enquanto ótica fica reservada à audição. Com isto, poderia a Academia (já que o seu dicionário, tal como todos os outros, nem sequer é “lei”, é apenas indicativo de uma escolha, que se imaginaria ponderada e consciente) dar outros passos. Por exemplo: o igualmente disparatado caso do para e do pára. Ia jurar que na minha primeira consulta a esta entrada, o pára de parar ainda tinha acento. Mas depois alguém deve ter achado que eram cedências a mais e acabou por ficar esta aberração: a palavra pára só surge como diminutivo de paraquedista, escrito também como pára-quedista; e na entrada relativa à palavra parar, há estes exemplos: «O comboio para em todas as estações» (sem acento) e duas frases erradas, quer na ortografia de 1945 quer na de 90 pois não há lugar a acentuação: «Onde "páram" os meus óculos?» e «Não sei onde "páram" as crianças.»
Deve-se isto à publicação apressada do dicionário, que não se duvida ter dado imenso trabalho? Talvez, mas uma Academia não é (ou não devia ser) uma instituição qualquer, para se permitir dar tais erros. É um exercício curioso rever tudo aquilo que a ACL se propôs alterar, a título de “melhorar” o AO90, para se perceber que nada foi aqui tomado em conta. Vejamos: péla ficou pela; pêlo ficou pelo; pôde não consta, só pode; dêmos não consta, só demos (“Demos com a porta de casa arrombada”); crêem, lêem e dêem não constam, só veem (sem acentuação, «Os primos veem-se nas férias»); o corrector (o que corrige) ficou com dupla grafia («corretor ou corrector»); o espectador admite espetador como variante, mas com espectador primeiro, dando apenas exemplos com espectador e espectadores; co-réu e co-ré continuam a admitir, como correctas, as ridículas formas corréu e corré; interruptor dá interrutor como variante, sem apresentar qualquer exemplo do seu uso nesta formulação; e decepção vem mesmo como deceção, atribuindo-se à primeira a designação de «grafia anterior a 1990». Como este dicionário, ao contrário do que sucedia com o seu antecessor em papel, omite qualquer transcrição ou indicação fonética, as palavras coação (de coar) e coação (de coagir, em detrimento de coacção) podem vir a ser pronunciadas da mesmíssima maneira, ou seja, como “coâção”. Um belíssimo serviço à fonética.
De resto, o dicionário da ACL não servirá de todo a cidadãos brasileiros, já que omite as grafias próprias do Brasil. Ao contrário do que faz, por exemplo, o brasileiro[sic*] Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (edição Kindle, 2011). Peguemos na palavra decepção. Ao procurá-la, lemos isto: «decepção /èç/ s. f. 1. Ilusão perdida. 2. Desapontamento. 3. Malogro de uma esperança. 4. Desilusão. [Portugal] Grafia de deceção antes do Acordo Ortográfico de 1990.» E há uma entrada também para «deceção /èç/ s. f.», que é igual, esclarecendo no fim: «Grafia no Brasil: decepção.» Ambas com indicações fonéticas. Por cá, temos de contentar-nos com “deceção”, palavra inexistente em qualquer outro país. Um inominável absurdo.
[* N. E. (04/05/2023) – As definições do dicionário Priberam permite quatro modos de apresentação: um para Portugal, outro para o Brasil, cada um em duas versões, uma nas ortografias anteriores ao Acordo Ortográfico de 1990 e outra com a aplicação do mesmo.]
Artigo de opinião do jornalista Nuno Pacheco, transcrito, com a devida vénia, do diário Público do dia 27 de abril de 2023.