Quem se preocupa com o carácter sistematizado — para aproveitar o termo do consulente — da ortografia do português (a qual tem uma história institucional a vários títulos diferente da espanhola ou da catalã) também se vê em dificuldades ao procurar perceber o critério de aplicação do hífen em cor-de-rosa e da sua ausência em cor de vinho no n.º 6 da Base XV do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 1990), sobre locuções que incluem elementos de ligação (p. ex., fim de semana, sala de jantar).1
Acontece que tal critério, enunciado de forma simplificada no AO 1990, mantém afinal um preceito já antigo, existente na Base XXVIII do Acordo Ortográfico de 1945 (AO 1945), onde se distinguiam os compostos hifenizados «em que o conjunto dos elementos, mantida a noção da composição, forma um sentido único ou uma aderência de sentidos» (exemplos: «água-de-colónia, arco-da-velha, bispo-conde, brincos-de-princesa, cor-de-rosa (adjectivo e substantivo invariável)...») das locuções do vocabulário comum, que incluem as «[...] locuções adjectivas: cor de açafrão, cor de café com leite, cor de vinho [...]». A diferença entre cor-de-rosa e cor de vinho era, portanto, semântica, como explica com mais pormenor Rebelo Gonçalves no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (Coimbra, Atlântida, 1947, pág. 202, n.º 2):
Diversamente de outras combinações vocabulares que se baseiam na palavra cor, como cor de laranja, cor de limão, cor de vinho, etc., as quais todas formam locuções, e não compostos, cor-de-rosa é verdadeiro composto, porque, quer como adjectivo, quer como substantivo (cf. seda cor-de-rosa, um cor-de-rosa vivo, etc), constitui uma unidade de sentido, com a qual a linguagem corrente supre, na expressão de uma das cores principais, a falta de um termo simples. De tal modo cor-de-rosa se tornou, quanto ao sentido, perfeita unidade, que até pode qualificar a própria palavra rosa, como vemos, p. ex., numa poesia de D. Virgínia Gersão («As Duas Rosas», in Portugal Feminino, ano III, Fev.º de 1932, n.º 25, pág. 7):
Num delírio selvagem de demente;
E a minha linda rosa cor-de-rosa
Pôs-se a chorar a outra amargamente... [...]
Ou seja, Rebelo Gonçalves defende a perspectiva segundo a qual cor-de-rosa tem hífen porque é uma unidade supletiva, associada a uma realidade que não se confunde com a de outras cores e, portanto, diferente das unidades que as exprimem (o conjunto das cores forma um campo lexical, o das cores). Também semântica é a posição em texto publicado no Ciberdúvidas, na rubrica Controvérsias, com recurso ao argumento de cor-de-rosa ter sofrido uma evolução semântica própria que restringe a análise semântica de rosa, enquanto espécie botânica cujas pétalas não são forçosamente cor-de-rosa.
Ora bem, ao critério de Rebelo Gonçalves, pode objectar-se certa falta de clareza, porque apoiada numa interpretação semântica facilmente refutável. Com efeito, entende-se que cor-de-rosa tenha hífen, porque é forma que refere globalmente uma cor que é nem o vermelho nem o laranja; e depreende-se que não se hifenize cor de limão porque esta é designação de um tom de amarelo, que já tem termo simples genérico que o designe — amarelo. Contudo, porque não usar hífen em cor de laranja, já que não há — pelo menos, usado actualmente e diferente do próprio vocábulo laranja — termo simples para a cor assim designada? Quanto a cor de vinho, poderá argumentar-se que o hífen tem aí cabimento por convenção, visto a locução se limitar a designar um tom de vermelho — cor já designada pelo vocábulo vermelho —, apesar do vinho, um pouco como as rosas, poder ter outra cor — amarela ou amarelada, no chamado «vinho branco», por exemplo. Parece-me, portanto, que convém rever o critério semântico para atribuição do hífen, porque os contra-exemplos apontados revelam que ele é contraditório.
Passando aos vocabulários ortográficos recentes, diga-se que estes se dividem quanto ao tratamento de cor de rosa:
— O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras regista cor-de-rosa, mas não inclui as locuções como cor de laranja ou cor de vinho, parecendo assim seguir o preceito da Base XV do AO 1990.
— O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora apresenta cor de rosa, generalizando-se a supressão do hífen a este caso.
— Finalmente, o Vocabulário Ortográfico do Português do ILTEC tem duas formas, com e sem hífen (cor-de-rosa e cor de rosa), apesar de nos respectivos critérios de aplicação se ler:
Elimina-se o hífen (mantendo separados os seus elementos) nos seguintes tipos de palavras compostas e locuções:
constituídas por um nome seguido de preposição e de outro nome.
Exemplos:
Conclui-se que nas locuções que integram elementos de ligação ainda há que encontrar consensos que permitam avaliar até que ponto se justificam as excepções identificadas no n.º 6 da Base XV do AO 1990. A consulta dos vocabulários ortográficos mais recentes permite verificar que os publicados em Portugal tendem a generalizar a supressão do hífen a casos como o de cor-de-rosa. Sugiro que uma intervenção conjunta das entidades intervenientes na aplicação do AO 1990 nos diferentes países de língua portuguesa seria benéfica se fosse capaz de clarificar (ou alterar) o disposto na referida Base XV sobre as locuções com elementos de ligação e decidir se o hífen em cor-de-rosa é de manter ou não.
1 Os compostos que designam espécies botânicas e zoológicas e incluem elementos de ligação (p. ex., uma preposição) têm hífen: ervilha-de-cheiro, andorinha-do-mar.
Cf. Uso do hífen + Entenda as mudanças do novo acordo ortográfico: Hífen + Reforma Ortográfica: prefixacão + Base XV – Hífen em Compostos, Locuções e Encadeamentos Vocabulares