Falta de estilo - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Falta de estilo
De uma geração de «linguareiros sem gramática e sem escova de unhas»

(...) Lá se foram já, em pouco tempo, uns depois dos outros, todos esses: o [António da Silva] Túlio, o [Lima] Felner, o Rebelo [da Silva], três dos literatos mais genuinamente literários que eu tenho conhecido. Tinham o diabo da arte no corpo. Tinham o amor das letras na massa do sangue. Haviam-se temperado como escritores na poderosa camaradagem de [Almeida] Garrett, o qual tinha querido ser tudo quando se podia ser com mais autoridade, com mais pompa e com mais prestígio na sociedade do seu tempo, para ter o direito de mostrar que a todos os títulos ele antepunha e preferia o de simples homem de letras; que acima de todas as jerarquias estava a alta nobreza do seu puro sangue de poeta, a sua fúlgida aristocracia nativa de artista de raça.

— Por cem ou duzentas moedas num dia de apuro (disse-me dele a mim o próprio Alexandre Herculano), o Garrett seria capaz de todas as porcarias que quiserem, menos de pôr num papel, a troco de todo o ouro deste mundo, uma linha mal escrita.

E depois desta frase, de que eu tomei nota textual há vinte anos, vindo a entrar no seu quarto da Ajuda o actual marquês de Sabugosa, Herculano, em pé, sem gravata, o lenço de algodão encarnado debaixo do braço esquerdo, a caixa de rapé na mão direita, abanando a cabeça, num gesto sacudido do braço, olhando-me de revés, acrescentou:

— Isso era homem! E todos esses malandros que aí andam a escrevinhar, a morder-lhe na fama, teriam obrigação de beijar de rastos as pegadas que ele deixou nesta terra!

Os velhos literatos da criação de Garrett tinham como ele, em maior ou menor grau de intensidade, esse culto religioso da forma, e eram mais ou menos escritores constantemente, eram estilistas sempre, e nas relações sociais, quando não traziam o madrigal nos lábios, tinham um epigrama nos dentes.

Além de um dos mais alegres, dos mais engraçados, dos mais originais indivíduos da confraria literária portuguesa, a morte de Silva Túlio faz desaparecer um dos raros literatos que ainda possuem em Lisboa a prenda, já hoje exótica, de saber português.

Depois da morte de [António Feliciano] Castilho era ele, com Latino Coelho e com Camilo Castelo Branco, quem mais completamente possuía o vocabulário da língua, vocabulário tão pouco aprendido pela maioria dos nossos modernos escritores.

Diz-se que imitamos a França. Os jornais franceses chegam-nos, porém, em cada dia cheios de verdadeiras obras de arte, preciosamente trabalhadas pelos mais peritos lapidários da palavra.

— Em Inglaterra — explicava-me ainda ultimamente o director de uma das grandes revistas de Londres — o conhecimento profundo da língua inglesa tornou-se uma necessidade indispensável do mais humilde colaborador do mais obscuro jornal. As grandes folhas célebres são todas redigidas, de princípio a fim, com a mais rigorosa correcção, com a mais subtil delicadeza de estilo a que se pode prestar a linguagem sábia. Um escritor que na imprensa inglesa cometesse um solecismo, morreria nesse dia para o respeito do público, porque na Inglaterra todo o homem que não sabe o ofício em que se emprega, ou é um aprendiz ignorado ou é um cidadão ridículo.

Em Portugal somos algum tanto mais latitudinários, evidentemente. A opinião mostra-se sempre animadora e amorável aos sarrafaçais diligentes do jornalismo, e tem um fraco especial, de mãe extremosa, pelas bobices reles e pelos chulismos crassos dos linguareiros sem gramática e sem escova de unhas.

Fora da chacota surrada, de botequim porco, na análise das paixões, no estudo dos temperamentos e dos caracteres, na poesia, na história, no drama, na crítica social, na controvérsia política, não temos expressões — como dizem nos brindes dos banquetes solenes os bacalhoeiros comovidos.

Falta-nos a precisão no termo exacto; falta-nos a elasticidade no giro da locução; falta-nos o rasgo pitoresco no desenho da frase; falta-nos a vibrante harmonia na orquestração do discurso. Coçamo-nos, contorcemo-nos, desarticulamo-nos, a querer dizer amor, e nunca nos chega a língua. Temos a prosa histérica, abastardada, exangue e desfalecida de uma raça moribunda.

A nossa pobre geração de anémicos dá à história das letras um ciclo de tatibitates. Estamos a chegar a velhos com a língua ainda peada, de literatiços mamões. E no fim deste século, de uma quase tão grande decadência literária como a do fim do século passado, pergunta a gente de onde nos virá um Filinto [Elísio] e um Bocage, que rape da tesoura com que se há-de cortar a trave à geração seguinte.

 

 

Fonte

Texto da autoria de Ramalho Ortigão (1836 — 1915 ), publicado  no livro As Farpas, em coautoria com Eça de Queirós. Edição David Corazzi, tomo III, pág. 44 e ss., janeiro de 1884, in Paladinos da Linguagem, 1.º vol., Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921. Título da responsabilidade do Ciberdúvidas

Sobre o autor

Ramalho Ortigão foi uma das principais figuras da Geração de 70, nasceu em 1836, no Porto, e morreu em 1915. Entre as suas obras destacam-se em 1870, a publicação de O Mistério da Estrada de Sintra e em 1871 surgem os primeiros folhetos de As Farpas em parceria com Eça de Queirós.