Durante a época colonial, a educação nas então colónias portuguesas não foi objeto de grande atenção por parte das autoridades governativas. Seria apenas após a declaração de independência desses países que teria início a preocupação das autoridades locais com o ensino e a sua massificação. Em Cabo Verde, nas primeiras décadas a seguir à declaração da independência, os objetivos passavam sobretudo pela redução do analfabetismo, que era bastante elevado. No entanto, os traços da herança colonial persistiram, refletindo-se ainda hoje em áreas como a escolarização das crianças e jovens. Por exemplo, embora a grande maioria da população cabo-verdiana tenha o crioulo como língua materna e o português seja para muitos uma língua segunda, todos os cabo-verdianos são apenas alfabetizados em português.
Portanto, de modo a perceber melhor o funcionamento do ensino neste arquipélago e, em particular, o ensino da língua portuguesa, o Ciberdúvidas conversou com a professora e investigadora da Universidade de Cabo Verde, Goreti Freire. Nesta conversa, esta docente explica-nos os principais desafios que a escola cabo-verdiana enfrenta nos dias de hoje e como é que a convivência entre o crioulo e o português influencia o ambiente escolar.
Goreti Freire explica que os cabo-verdianos «não são alfabetizados em crioulo, pois esta língua é apenas adquirida e aprendida em contexto familiar». Quer isto dizer que, na escola, quando se começa a introduzir os conteúdos das diferentes áreas do saber, estes não são oficialmente feitos na língua materna da grande maioria da população, mas em português, língua segunda. Para além disso, não existe, neste momento, em Cabo Verde, a preocupação em introduzir um ensino bilingue, que diferencie as duas línguas. Isto, na ótica de Freire, é um problema, uma vez que se corre «o risco de ensinar português, que é a língua segunda, com as mesmas metodologias com que se ensinam as línguas maternas».
No entanto, esta investigadora considera que «a sala de aula é um lugar privilegiado para a imersão linguística», uma vez que embora o português seja efetivamente a língua do ensino, o crioulo cabo-verdiano tem vindo «a ganhar espaço na sala de aula». Segundo Freire, os estudos realizados sobre o espaço da sala de aula em Cabo Verde indicam que «em várias áreas, os professores vão variando entre o uso do crioulo e do português».
Outro problema diretamente relacionado com o ensino da língua portuguesa é o facto de, como ainda não há estudos suficientes que permitam uma caracterização do português de Cabo Verde, a variante orientadora proposta pelos programas escolares ser a europeia. Todavia, esta professora acrescenta que «apesar de oficialmente se seguir a norma europeia, a presença da norma brasileira está bem patente, desde a comunicação social até ao espaço de sala de aula». Isto acontece porque, nos últimos anos, com a emergência da Internet e entrada dos canais brasileiros na antena cabo-verdiana, se tem verificado uma grande influência do português do Brasil neste país. Para além disso, muitos professores acabam por fazer a sua formação inicial no Brasil, o que faz com que importem, acima de tudo, muitos materiais didáticos como, por exemplo, manuais escolares.
Já no que concerne aos conteúdos e construção dos programas, Freire admite que «ainda se segue muito aquilo que se faz em Portugal». Isto, obviamente, não invalida que não haja uma preocupação em trazer conteúdos que se considerem importantes para a vida académica de um estudante de Cabo Verde, porém, este esforço ainda não é visível na prática de muitas escolas. Esta professora assinala que, atualmente, muitos professores, na sua prática letiva diária, utilizam manuais e materiais importados do Brasil e sobretudo de Portugal. Neste sentido, muitos desses instrumentos não refletem e nem têm em conta as investigações feitas sobre as áreas críticas dos estudantes cabo-verdianos. Goreti Freire admite ainda que haja «muita produção científica, muitas recomendações e problemas que são identificados, quando se deve introduzir estas preocupações no ensino, este processo acaba sempre por não acontecer».
No fundo, para esta investigadora o grande problema do ensino atual em Cabo Verde é o facto de não existir uma alfabetização do crioulo, língua materna da grande maioria dos cabo-verdianos. Freire considera que seria importante a presença das duas línguas na escola e que os alunos cabo-verdianos tivessem a possibilidade de aprender a sua língua materna num contexto mais informal, pois isto também estaria a facilitar a aprendizagem do português e criaria as condições para dizer que os cabo-verdianos são verdadeiramente bilingues.
Veja o vídeo (dividido em duas secções) da segunda parte da entrevista aqui:
Secção 1
Secção 2