Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No período «É a tarde que chega», ocorre o emprego da expressão expletiva «É... que», caracterizando um período simples, ou trata-se de um período composto formado por duas orações distintas («É a tarde» e «que chega»)?

Além disso, na análise sintática do período, o sujeito da forma verbal chega é «tarde» ou «que»?

Obrigado!

Resposta:

O recurso estilístico «É... que...» é classificado* como expressão expletiva, pois realça, enfatiza, focaliza o sujeito da frase «a tarde» – note que o sintagma «a tarde» não está preposicionado, logo não pode ser uma locução adverbial de tempo. Suprimindo-se tal expressão expletiva, comprova-se isso claramente: «A tarde chega.»

Dentro da análise gramatical praticada no Brasil, quando há uma expressão expletiva na frase, o verbo ser que a forma não é tomado como constituinte de oração. Além disso, o vocábulo que, elemento desta construção, não exerce nenhuma função sintática.

Assim, há apenas uma (1) oração na frase "É a tarde que chega".

Sempre às ordens!

*Visto ser brasileiro o consulente, a nomenclatura usada na resposta reflete a metalinguagem empregada na tradição gramatical do Brasil.

Pergunta:

Por que o plural de sol é acentuado (sóis), e a 2.ª pessoa do plural («vós sois») do verbo ser não é acentuada?

Entendo que as duas formas são monossílabas terminadas em ditongo aberto.

Obrigado.

Resposta:

Segundo as regras de acentuação gráfica abordadas na tradição escolar de ensino de gramática, o acento gráfico em sóis se deve ao fato de haver um ditongo aberto, ou seja, o timbre da vogal o é aberto, de modo que se grafa sóis.

No entanto, a segunda pessoa do plural do presente do indicativo do verbo ser – a saber: sois – não tem o timbre aberto, e sim fechado; afinal, não se diz «Vós "sóis" o sal da terra», e sim «Vós "sôis" o sal da terra». Assim sendo, nessa flexão verbal («vós sois»), não se aplica a regra de acentuação gráfica dos ditongos abertos.

Em suma, eis aqui dois exemplos de cada grafia: «Estava tão quente o dia que parecia haver dois sóis no céu» e «Vós sois pessoas admiráveis».
 
Sempre às ordens!

Pergunta:

O dicionário diz que bobo(a) e idiota significam a mesma coisa.

Porém, se alguém chama o próprio par romântico de bobo(a), é elogio, enquanto que se alguém chama o próprio par romântico de idiota, é ofensa!

Qual a razão disso no caso?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Há uma área nos estudos linguísticos chamada pragmática – é o ramo da linguística que estuda como o contexto comunicativo influencia o significado das palavras e das frases: há uma preocupação não só com o que as palavras significam isoladamente, mas também com como elas são usadas em situações reais de comunicação.

Seguindo a linha de pensamento e de dúvida do consulente, podemos dizer que as palavras bobo e idiota podem ser sinônimas em certos contextos, claro; mas, em outros, elas têm significados diferentes dependendo de como são ditas, de quem as diz e da situação em que se diz.

1) «Você é um bobo!»

Essa frase, a depender do tom e do contexto, pode ser dita de forma carinhosa ou até brincalhona. Em outras palavras, se uma pessoa faz algo tolo de maneira inocente, o outro pode usar bobo com uma conotação mais leve, quase afetuosa.

2) «Você é um idiota!»

Já essa frase é, em geral, considerada mais pesada porque tem uma impressão negativa mais forte. Pode ser usada em situações em que alguém fez algo realmente estúpido ou prejudicial, de maneira que o termo idiota indica uma crítica mais severa.

Em virtude disso, no campo da pragmática, a diferença entre bobo e idiota vai além do dicionário, pois se baseia no contexto e na intenção de quem fala. O significado de cada palavra depende da situação comunicativa real e das relações entre as pessoas envolvidas. Esse é o ponto.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Seria correto dizer que, no contexto abaixo, o verbo fazer é classificado como verbo de ligação?

«O uso da crase se faz necessário na locução à noite.»

Resposta:

Segundo o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft, a análise e classificação que se dá ao tradicional verbo de ligação tornar-se também se dá ao verbo fazer-se (com o sentido de «tornar-se»). Assim sendo, se a classificação dada por Luft é a mesma, então há verbo de ligação na frase do consulente.

No livro Lições de português pela análise sintática, de Evanildo Bechara, também se exemplifica fazer-se no rol de verbos de ligação indicadores de mudança de estado.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Consideremos os seguintes exemplos:

«Bebi dois fardos de refrigerante.»

«Cortei três quilos de lenha.»

«Comprei dois litros de água.»

Nestes três casos, fardos, quilos e litros parecem todos serem substantivos que não possuem existência independente (litros de quê?), portanto, seriam substantivos abstratos. Diria mesmo que não possuem sentido independente. Parece-me intuitivo, portanto, que «de leite», «de lenha» e «de água» sejam complementos nominais, respectivamente, dos três substantivos citados, pois além de completarem os sentidos dos mesmos, possuem eles mesmos sentido passivo .

Entretanto tradicionalmente são considerados substantivos abstratos aqueles que representam qualidade, estado, ação, conceito ou sentimento; não é mencionada quantidade ou ordem de grandeza nessa definição.

Minha dúvida é se se substantivos desse tipo são de fato abstratos, ou se são concretos. Nesse último caso, «de leite», «de lenha e «de água» seriam adjuntos adnominais, o que me soa "insuficiente", pois aí seriam termos acessórios; os substantivos citados parecem requerer obrigatoriamente um complemento.

Muito obrigado desde já!

Resposta:

Sobre fardos, quilos e litros serem substantivos abstratos ou concretos, não há dúvida, são concretos, pois, por definição, a presença de fardos, quilos e litros no mundo real independe da existência de um ser humano, pois (1) eles existiriam mesmo que seres humanos não existissem e (2) se materializam no mundo real em forma de entidades físicas: «Pegue ali aquele fardo»; ou «Estes dois quilos aqui foram a gordura que perdi».

No que diz respeito ao complemento nominal, a tradição gramatical brasileira parece não ter se aprofundado no tema, ensejando grande dificuldade em certos casos, como o trazido à baila. Por isso, tornou-se necessário recorrer a outra fonte para uma resposta possível.

Na p. 362 da 5.ª edição da Gramática da Língua Portuguesa, de Mira Mateus et al., sugere-se que, em «Trouxe dois litros de leite» – o que certamente inclui os outros exemplos do consulente –, a expressão preposicionada funciona como complemento nominal, justamente porque a expressão quantitativa formada por «dois litros» exige um complemento preposicionado (dois litros de quê?).

É importante ressaltar que a tradição gramatical brasileira desabona complementos nominais ligados a substantivos concretos. No entanto, os gramáticos brasileiros Evanildo BecharaCelso Pedro Luft veem diferentemente da maioria.

Por exemplo, em seu Dicionário Prático de Regência Nominal, Luft apresenta certos substantivos concretos derivados de verbos por sufixação que exigem complement...