Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Consultando o dicionário de sinônimos da língua portuguesa, de Rocha Pombo, eis que me deparo com o seguinte abono no verbete da preposição a: «Comemos a enjoar.»

Sei que essa preposição, ao introduzir orações infinitivas, relaciona noções circunstanciais de condição ou tempo concomitante e, a meu ver, este contexto não permite perceber nenhuma dessas circunstâncias.

Para mim, essa oração seria parafraseável por: «Comemos tanto que enjoamos ou comemos a ponto de enjoar.»

Assim, por favor e se possível, peço um parecer sobre a correta interpretação para esse uso deste vocábulo em apreço.

Resposta:

A análise do consulente está correta. O uso da preposição a introduz uma oração subordinada adverbial consecutiva reduzida de infinitivo*. Por isso «Comemos a enjoar» equivale a «Comemos a ponto de enjoar».

Um estudioso que abona tal valor semântico da preposição a é Cláudio Brandão, em seu livro Sintaxe Clássica Portuguesa.

Também nos parece possível a análise de a como equivalente a até, como sugere ser intercambiável o gramático Rocha Lima, no capítulo de preposição de sua gramática. Nesse caso, o valor seria temporal, indicando o termo, isto é, o limite: «Comemos até enjoar.»

Sempre às ordens!

 

*Por ser brasileiro o consulente, foi usada na resposta a nomenclatura gramatical do Brasil

Pergunta:

Tenho uma dúvida sobre o uso da preposição em frases como:

«Em uma conversa, esteja atento a se o seu interlocutor lhe entende.»

«O professor estava atento a que ninguém colasse na prova.»

«Ela mostrou-se grata a que a ajudassem naquele momento difícil.»

Esse uso da preposição antes de que ou se é realmente natural no português, ou soa artificial?

Pergunto porque, ao ensinar esse ponto aos alunos, a construção lhes pareceu estranha ao ouvido.

Gostaria também de saber se há outros exemplos com outras preposições (como para, em, com) usadas antes de orações introduzidas por que ou se, para compreender melhor a extensão desse uso.

Poderiam esclarecer a correção dessas construções e indicar bibliografia onde essa questão esteja tratada, de preferência com páginas específicas?

Muito obrigado.

Resposta:

É natural e, portanto, correto, na língua portuguesa o uso de preposição antes da conjunção integrante que: «a que», «com que», «de que», «em que», «para que»...

O papel da preposição nesse contexto é o seguinte: marcar a relação de subordinação entre um elemento da oração principal e o seu complemento oracional (a oração subordinada substantiva objetiva indireta ou completiva nominal)*. Exemplos:

– Elas nos avisaram de que tudo seria mais fácil.

– Não vamos insistir em que você volte.

– Precisamos admoestar os jovens a/para que estudem.

– Estamos seguros de que nada será fácil.

– Eu admiro o seu interesse por que todos estejam bem.

– Ele era receptivo a que se acolhessem novas ideias.

O que provoca estranhamento em usos como «O professor estava atento a que ninguém colasse na prova» são, pelo menos, dois fatores: um de ordem linguística (1) e outro de ordem extralinguística (2), a saber:

(1) A frequência com que costumamos omitir as preposições antes das conjunções integrantes nos faz estranhar o sua aparição, quando explicitada: «Elas nos avisaram (de) que tudo seria mais fácil.»

2) A falta de conhecimento linguístico mais profundo gerado pela baixa leitura de textos que exploram possibilidades linguísticas menos comuns costuma-nos gerar certo estranhamento. Quanto mais se investe no letramento, mais se passam a conhecer as estruturas gramaticais pouco usuais do nosso idioma, como em «Ele se mostrou grato a que o ajudassem naquele momento» ou «Hesitou sobre se devia aceitar ou não o convite».

Especificamente sobre a conjunção integrante se, o uso de preposição antes dela é raríssimo nos compê...

Pergunta:

Se, por exemplo, estou numa manhã ou tarde de um dia qualquer e quero me referir à noite que está por vir (ou seja, à noite do mesmo dia), qual pronome devo usar?

Quero aplicar o devido pronome à sentença: «O evento acontecerá [pronome] noite.»

Vejo com frequência pessoas usando essa e esta, inclusive no trecho de uma telenovela que tem em sua cronologia e contexto um intelectual do início do século passado – XX.

Entretanto, acredito que, ao menos, a construção da frase mereça a proposição em e, sendo assim, a dúvida se restrinja aos pronomes nessa ou nesta.

Aprecio o espaço. Obrigado.

Resposta:

Em adjuntos adverbiais de tempo*, como «esta noite», «esse sábado», «esta manhã», os gramáticos normativos que tocam nessa questão, como Evanildo Bechara ou Napoleão M. de Almeida, dizem ser facultativo o uso da preposição em. Logo, gramaticalmente, faz parte da norma-padrão «Esta noite iremos ao restaurante» ou «Nesta noite iremos ao restaurante».

Quanto ao emprego do pronome demonstrativo (este ou esse) trazido pelo consulente, a recomendação normativa é que se use este para indicar o tempo futuro dentro do mesmo dia presente: «O evento acontecerá nesta noite» (ou seja, «na noite de hoje», «nesta noite de hoje»).

Sempre às ordens!

 

* Por ser brasileiro o consulente, foi usada na resposta a nomenclatura gramatical do Brasil.

Pergunta:

«Eu gostaria de ajudá-la.»

«Ele as incentivou a ajudarem-no.»

Na primeira frase , seria possível haver uma mesóclise? Ex.: «Eu gostá-lo-ia de ajudar.»

A pergunta surge porque eu o tinha como verbo auxiliar.

«c) vontade ou desejo: querer escrever, odiar escrever, desejar escrever, […]»

Porém, gostar aparentemente não é. Parece sensitivo, então, não?

Na segunda frase, gostaria de saber se o verbo incentivar possui as características de um verbo causativo.

A dúvida surge porque, conquanto – na minha linha de raciocínio – existam os elementos de um verbo causativo, há, aqui, uma preposição (diferente dos vários verbos causativos com os quais estou acostumado). 

Em minha cabeça não tão familiarizada com terminologias diferentes, neste caso, ou é um verbo auxiliar (a flexão do infinitivo estaria errada), ou é um verbo causativo (a flexão do infinitivo também estaria errada). Há um terceiro elemento que paira sobre mim, e eu não o vejo? 

Obrigado. 

Resposta:

Os verbos gostar e incentivar não são auxiliares nem sensitivos.

Como a questão da auxiliaridade verbal é complexa, foi necessário ampliar a resposta num outro artigo¹, a fim de dirimir o maior número possível de dúvidas acerca desse tema.

Quanto aos verbos causativos e sensitivos, existe um número bem delimitado: mandar, deixar, fazer e sinônimos (causativos); ver, ouvir, sentir e sinônimos (sensitivos). Exemplos:

– Mandei o rapaz entrar na sala.

– Deixaram o cão subir no sofá.

– Fizeram-nos descer do palco.

– Elas nos viram cantar sozinhos.

– Ouvi fofocarem sobre nós.

– Sentiram o frio atravessar a espinha.

Note também que os verbos acima nunca exigem preposição, pois são transitivos diretos – já gostar é transitivo indireto («gostar de» + infinitivo) e incentivar é transitivo direto e indireto («incentivar alguém a» + infinitivo). Esta é mais uma razão de não se enquadrarem entre os causativos e sensitivos.

Por fim, sobre a dúvida da mesóclise em "Eu gostá-lo-ia de ajudar", é o seguinte: uma vez que gostar não é um verbo auxiliar, pois exige objeto indireto — seja em forma de termo («Gosto de sorvete»), seja em forma de oração («Gosto de ajudar o meu pai») –, não é possível ocorrer mesóclise; além disso, o pronome oblíquo átono o (-lo) não funciona como objeto direto de gostar, e sim de ajudar: «Eu gostaria de ajudá-lo.»

Sempre às ordens!

 

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Pergunta:

Gostaria de aprender a diferenciar com mais exatidão um objeto indireto de outros termos da oração.

Na frase:

«Promovi uma festa para os alunos.»

Nesse caso, «Para os alunos» seria um objeto indireto, por mais que o verbo seja transitivo direto, quem promove, promove algo, certo?

Porém, vi em uma aula como adjunto de finalidade, o que me deixou bem confuso, até porque li em um site de estudo que dizia que, na frase «comprei um carro para ela», «para ela» seria o objeto indireto, e isso me parece semelhante a outra frase com o verbo promover.

Gostaria muito de entender melhor sobre isso.

Obrigado.

Resposta:

Note que promover é sinônimo de proporcionar ou oferecer. Logo, a regência de promover segue a regência desses dois sinônimos, que são transitivos diretos e indiretos: «proporcionar X a Y», «oferecer X a Y»; «logo, promover X a Y».

No entanto, na norma culta brasileira contemporânea, é muito comum a substituição da preposição a por para ao introduzir objetos indiretos*, semanticamente tomados na tradição gramatical por elementos recebedores ou beneficiários da ação verbal – assim como em «Comprei um carro para ela», no qual o núcleo do objeto indireto (ela) é o alvo recebedor (favorecido, beneficiado) da ação verbal.

Um adjunto adverbial de finalidade não é uma pessoa, e sim um propósito. Veja alguns exemplos:

– Viajou ontem para a promoção do seu livro.

– Para a alegria dos cidadãos, o governador decidiu se reeleger.

– Ele promoveu uma festa para o apaziguamento da má relação entre os funcionários.

Assim, «para os alunos» (ou «aos alunos») é um objeto indireto, e não um adjunto adverbial de finalidade.

Numa análise mais profunda, visando-se à distinção entre objeto indireto e adjunto adverbial, veja dois critérios empregados a partir da análise da frase «Ele promoveu uma festa para os alunos».

I. Ainda que não se explicite o objeto indireto («Ele promoveu uma festa»), deduz-se que o complemento verbal está implícito: afinal, quem promove, proporciona, oferece uma festa, certamente o faz tendo pessoas como alvo beneficiado desse momento: «promover algo (a/para alguém)».

II. A prova de que «para os alunos» (ou «aos alunos») é um objeto indireto é a possibilidade de usar lhe (essencia...