Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Seria correto dizer que, no contexto abaixo, o verbo fazer é classificado como verbo de ligação?

«O uso da crase se faz necessário na locução à noite.»

Resposta:

Segundo o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft, a análise e classificação que se dá ao tradicional verbo de ligação tornar-se também se dá ao verbo fazer-se (com o sentido de «tornar-se»). Assim sendo, se a classificação dada por Luft é a mesma, então há verbo de ligação na frase do consulente.

No livro Lições de português pela análise sintática, de Evanildo Bechara, também se exemplifica fazer-se no rol de verbos de ligação indicadores de mudança de estado.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Consideremos os seguintes exemplos:

«Bebi dois fardos de refrigerante.»

«Cortei três quilos de lenha.»

«Comprei dois litros de água.»

Nestes três casos, fardos, quilos e litros parecem todos serem substantivos que não possuem existência independente (litros de quê?), portanto, seriam substantivos abstratos. Diria mesmo que não possuem sentido independente. Parece-me intuitivo, portanto, que «de leite», «de lenha» e «de água» sejam complementos nominais, respectivamente, dos três substantivos citados, pois além de completarem os sentidos dos mesmos, possuem eles mesmos sentido passivo .

Entretanto tradicionalmente são considerados substantivos abstratos aqueles que representam qualidade, estado, ação, conceito ou sentimento; não é mencionada quantidade ou ordem de grandeza nessa definição.

Minha dúvida é se se substantivos desse tipo são de fato abstratos, ou se são concretos. Nesse último caso, «de leite», «de lenha e «de água» seriam adjuntos adnominais, o que me soa "insuficiente", pois aí seriam termos acessórios; os substantivos citados parecem requerer obrigatoriamente um complemento.

Muito obrigado desde já!

Resposta:

Sobre fardos, quilos e litros serem substantivos abstratos ou concretos, não há dúvida, são concretos, pois, por definição, a presença de fardos, quilos e litros no mundo real independe da existência de um ser humano, pois (1) eles existiriam mesmo que seres humanos não existissem e (2) se materializam no mundo real em forma de entidades físicas: «Pegue ali aquele fardo»; ou «Estes dois quilos aqui foram a gordura que perdi».

No que diz respeito ao complemento nominal, a tradição gramatical brasileira parece não ter se aprofundado no tema, ensejando grande dificuldade em certos casos, como o trazido à baila. Por isso, tornou-se necessário recorrer a outra fonte para uma resposta possível.

Na p. 362 da 5.ª edição da Gramática da Língua Portuguesa, de Mira Mateus et al., sugere-se que, em «Trouxe dois litros de leite» – o que certamente inclui os outros exemplos do consulente –, a expressão preposicionada funciona como complemento nominal, justamente porque a expressão quantitativa formada por «dois litros» exige um complemento preposicionado (dois litros de quê?).

É importante ressaltar que a tradição gramatical brasileira desabona complementos nominais ligados a substantivos concretos. No entanto, os gramáticos brasileiros Evanildo BecharaCelso Pedro Luft veem diferentemente da maioria.

Por exemplo, em seu Dicionário Prático de Regência Nominal, Luft apresenta certos substantivos concretos derivados de verbos por sufixação que exigem complement...

Pergunta:

Há como me informar se há registros em algum dicionário, gramática ou mesmo Corpus do português, das locuções «não excluso que» e «incluso que» enquanto conjunções explicativas?

Vi essa informação em um livro não tão antigo (A palavra que, 1961) de Arlindo de Sousa, sem, aliás, abonar nenhum exemplo.

Obrigado

Resposta:

Após consultar cerca de 50 livros de gramática e quejandos dos séculos XIX, XX e XXI, oito dicionários de língua portuguesa dos séculos XIX e XX, e todo o Corpus do Português, não foi encontrada nem sequer uma ocorrência desse tipo de locução trazida pelo consulente.
 
Sempre às ordens!

Pergunta:

Quero saber se a palavra brasiliano(a) já fez ou ainda faz parte do idioma português padrão, se é um arcaísmo ou se é um decalque do inglês Brazilian.

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Segundo os dicionários Aurélio, HouaissMichaelis e Aulete, a palavra brasileiro tem por sinônima a palavra brasiliano (e outras).

Nenhum desses dicionários diz ser um arcaísmo ou decalque (Houaiss menciona que o primeiro registro dessa palavra em língua portuguesa é do século XVIII, sem fazer relação alguma com outra palavra de língua estrangeira).

Certamente seu uso é raríssimo, como se comprova no Corpus do Português (em linguagem jornalística lusitana e brasileira entre 2012 e 2019), preferindo-se quase unanimemente o gentílico brasileiro.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Seria correto classificar o vocábulo que no contexto abaixo como advérbio de exclusão equivalendo a , somente?

«Não estuda outra coisa que geografia.»

Resposta:

Antes de responder propriamente à questão, é interessante compartilhar aqui o que se encontra na p. 219 do Dicionário de Questões Vernáculas, de Napoleão M. de Almeida.

Sob o verbete "outro que não", entende o gramático ser canhestra a tradução de "other than", que costuma aparecer em jornais. Assim diz Napoleão, criticando a tradução anglicista (tratada como decalque): «Um pouco mais de respeito ao idioma da terra fará descobrir o redator a que corresponde o inglês... e o não deixará confundir os leitores em outras passagens: "any thing other than this” (qualquer coisa que não seja esta)... Tradução não é sinônimo nem de obediência servil nem de momice. Assim se diz em português: O apito dos guardas de trânsito outra coisa não é senão índice de atraso, de indisciplina, de falta de educação social e de desrespeito a leis» (grifos meus), e acrescento: ou «não é outra coisa senão».

Curioso é que o gramático Evanildo Bechara, em sua própria redação, usa construções sintáticas semelhantes em alguns trechos de sua gramática, como no capítulo de preposição («Não exerce nenhum outro papel que não seja ser índice da função gramatical de termo que ela introduz») e no capítulo de orações subordinadas adjetivas («Em geral, o adjetivo anteposto [também chamado epíteto] traduz, por parte da perspectiva do falante, valor explicativo ou descritivo: a triste vida. Aqui o adjetivo não designa nenhum tipo de vida que se oponha a outro que não seja triste;...»).

De todo modo, se desconsiderarmos ser isto um decalque (ou não) e nos centrarmos apenas na análise gramatical da estrutura trazida pelo consulente («Não estuda outra...