Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a explicação morfossintáctica das estruturas (entre as aspas) nas seguintes frases:

«É de lembrar que» os alunos devem trazer o material escolar...

«Importa dizer que» os alunos tiveram a coragem de manifestar-se...

«Importante dizer que» os alunos tiveram a coragem de manifestar-se...

«É necessário realçar que» os alunos devem informar aos pais sobre o que aconteceu.

«Convém referir que» a polícia continua a investigar o caso.

«Faz-se mister que» o pedido seja logo atendido.

Desde já, muito obrigado!

Resposta:

Eis a análise sintática* solicitada.

1. «É de lembrar que» os alunos devem trazer o material escolar...

O verbo ser é um verbo de ligação e constitui a oração principal. A estrutura «de lembrar» é um predicativo do sujeito – segundo Evanildo Bechara, o verbo no infinitivo dentro dessa estrutura gramatical (entre aspas) não constitui oração. O que é uma conjunção integrante: introduz uma oração subordinada substantiva subjetiva («que os alunos devem trazer o material escolar»).

2. «Importa dizer que» os alunos tiveram a coragem de manifestar-se...

O verbo importar (intransitivo) constitui a oração principal da oração subordinada substantiva subjetiva reduzida de infinitivo «dizer que os alunos tiveram a coragem de manifestar-se». O que é uma conjunção integrante: introduz uma oração subordinada substantiva objetiva direta («que os alunos tiveram a coragem de manifestar-se»), cuja oração principal é dizer.

3. «Importante dizer que» os alunos tiveram a coragem de manifestar-se...

O adjetivo importante é um predicativo do sujeito – o verbo de ligação, que constitui a oração principal, está implícito antes dele («É importante dizer que...»). O segmento «dizer que os alunos tiveram a coragem de manifestar-se» é uma oração subordinada substantiva subjetiva reduzida de infinitivo da oração principal «É importante». O que é uma conjunção integrante: introduz uma oração subordinada substantiva objetiva direta («que os alunos tiveram a coragem de manifestar-se»), cuja oração principal é dizer.

4. «É necessário realçar que» os alunos devem informar aos pais sobre o que aconteceu.

O verbo ser é um verbo de ligação e constitui a oração principal. O adjetivo necessário é...

Pergunta:

É obrigatório ou facultativo o uso de se em construção como: «fácil de (se) fazer»?

Mais precisamente, pergunto se não é obrigatório o uso de se na frase

«Tomado pela preocupação com a doença, sua vida não seria apenas impossível, mas sobretudo indigna de viver.»

Se for possível, peço referencias bibliográficas para a fundamentação da resposta.

De antemão, muito obrigado.

Resposta:

Estruturas gramaticais como «bom de se comer», «fácil de se fazer», «difícil de se conseguir» e afins, em que o infinitivo já tem sentido passivo, não são abonadas pelos gramáticos normativos tradicionais que tocam no assunto. Para a sua correção, basta que se suprima o se: «bom de comer», «fácil de fazer», «difícil de conseguir», etc.

Quanto às referências bibliográficas, sugerimos consulta ao Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, de Domingos P. Cegalla; ao 1001 Dúvidas de Português, de José de Nicola e Ernani Terra; ao Manual de Redação Jurídica, de José Maria da Costa.

Sempre às ordens!

* Por ser brasileiro o consulente, a resposta se baseou nas lições da gramaticografia tradicional brasileira.

 

N. E. – No português europeu, não parece haver registo de censura normativa sobre o uso do pronome se na construção de infinitivo passivo. Ver

Duplos particípios: eis um problemão
Um imbróglio na norma-padrão

«Para resolver esse imbróglio do particípio duplo, será preciso fazer uma pesquisa inédita e vultosa em corpus contemporâneo de linguagem verdadeiramente culta (textos dos melhores escritores do idioma — literários e não literários)» – adverte o gramático Fernando Pestana sobre uma área da flexão verbal bastante instável no português contemporâneo. Apontamento do autor na sua página pessoal no Facebook (25/02/2025) e aqui disponibilizado com a devida vénia.

Pergunta:

Na frase «A médica me disse que o horário das 15:00 lhe é melhor que o das 16:00», o uso do lhe é gramaticalmente correto?

Já ouvi falar do caso em que o lhe pode acompanhar um verbo de ligação para agregar significado a um adjetivo, como em «A ferramenta lhe é útil».

O adjetivo melhor também aceita que tenha sentido agregado pelo lhe?

Ou o correto seria, no contexto da primeira frase, «A médica me disse que o horário das 15:00 é melhor para ela que o das 16:00»?

Obrigado!

Resposta:

O uso do lhe é gramaticalmente correto* na frase trazida pelo consulente e funciona sintaticamente como complemento nominal do adjetivo melhor, conforme se constata no Dicionário Prático de Regência Nominal, de Celso Pedro Luft.

A frase equivale a «A médica me disse que o horário das 15h é melhor para ele que o das 16h».

Sempre às ordens!

* Por ser brasileiro o consulente, a explicação nesta resposta se baseia na tradição gramatical brasileira.

Pergunta:

Sabemos que o aposto tem natureza substantiva e se refere a outro substantivo, certo?

Mas tenho uma dúvida: pode haver uma construção apositiva para se referir a um adjetivo, por exemplo?

Ex.: «O etanol é límpido, atributo fundamental deste combustível.»

Neste caso, ainda existe aposto?

Obrigado!

Resposta:

Segundo a tradição gramatical brasileira*, um aposto não retoma um adjetivo, mas sim (1) um substantivo, (2) um pronome, (3) um numeral, (4) um elemento substantivado, (5) uma oração inteira, como se vê, respectivamente:

(1) A limpidez, marca do bom etanol, é um atributo fundamental.

(2) Ela, a limpidez, é um atributo fundamental do bom etanol.

(3) Ambas (a limpidez e a baixa acidez) são atributos fundamentais do bom etanol.

(4) O purificar do etanol – processo importante para a sua limpidez – é fundamental.

(5) O etanol do Brasil é ótimo, fato incontestável.

Quanto à pergunta mais específica do consulente, não se encontrou na gramaticografia tradicional brasileira sequer um exemplo de aposto retomando um adjetivo, pelo que torna a análise sintática da oração bastante original. No entanto, no contexto frasal trazido, não nos parece haver outra análise sintática possível para «atributo fundamental deste combustível» senão como aposto do adjetivo límpido.

O que nos parece bastante coerente ser aplicado à análise sintática do aposto neste caso especial, levando-se em conta a sua natureza de retoma de segmentos com valor substantivo, é a relação metonímica entre o adjetivo límpido e o substantivo abstrato derivado dele (limpidez), como se a frase assim estivesse ...