Há períodos históricos que marcam imenso um povo, quer seja pelas mudanças que operam na sua organização, quer seja herança cultural que deixam. O início do século XIX em Portugal foi um desses momentos atribulados, que moldou para sempre o país em termos políticos, económicos, sociais e até mesmo culturais. Entre 1807 e 1810, Portugal sofreu três invasões dos exércitos napoleónicos. Contextualizando, face à guerra europeia declarada por Napoleão Bonaparte, que pretendia espalhar pelo velho continente os ideais da Revolução Francesa, em 1806, foi decretado pela França um bloqueio continental ao comércio com a Inglaterra. Este tinha como objetivo derrotar os ingleses, arqui-inimigos dos franceses e resistentes às propensões imperialistas de Napoleão. Contudo, Portugal, velho aliado comercial da Inglaterra, optou por continuar a negociar com este país e deixar os seus portos abertos aos ingleses. Consequentemente, nos três anos seguintes, este cantinho à beira-mar plantado sofreu três invasões por parte dos franceses. Apesar de conturbado, o período das invasões napoleónicas deixou marcas culturais que vão desde a gastronomia até a expressões idiomáticas que ainda hoje se usam. E que expressões são essas?
Na sequência do episódio da partida da família real para o Brasil, evitando assim a sua captura pelo general Junot, que entrara em Lisboa, em 30 de novembro de 1807, com o intuito de prender o príncipe regente D. João, futuro D. João VI, e que acabou frustrado a ver os navios com a realeza e a corte portuguesa a caminho do novo mundo, terá surgido a expressão «ficar a ver navios». Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa (DLPACL), esta expressão tem como sentido «não obter ou alcançar o que se desejava, sofrendo uma desilusão; ficar sem nada». Todavia, Ana Salgado, na revista Gerador, assinala que existem também outras explicações para o aparecimento desta expressão. Uma delas remete ao sebastianismo, crença dos que acreditavam que o Rei D. Sebastião não morrera na batalha de Alcácer-Quibir (1578) e regressaria a Portugal numa manhã de nevoeiro. Na época do domínio espanhol, havia pessoas que se deslocavam ao Alto de Santa Catarina para ver se chegavam os navios que tinham partido para a batalha na esperança de ver o Rei regressar. Ora, como é sabido, o Rei nunca voltou, sendo que os desejos esperançosos desses crentes nunca se concretizaram, ficando estes simplesmente a «ver navios».
Outra expressão que também terá aparecido na altura das invasões francesas foi «ir para o maneta», que significa, de acordo com a Infopédia, «dar cabo de alguém ou de algo; destruir; estragar-se; inutilizar-se; morrer». Neste caso, maneta é uma referência ao general francês Henri Louis Loison, que não tinha um braço, o que lhe valeu a alcunha de maneta. Durante a primeira invasão, em 1807, este temível general terá agido com extrema crueldade sobre os lugares e as pessoas por onde passava, deixando muitos mortos atrás de si. Por conseguinte, nesta altura, «mandar para o maneta» era sinónimo de tortura ou morte.
Felizmente, nas suas três invasões, os franceses não foram bem-sucedidos em tudo aquilo que pretendiam, acabando inclusive por ter de abandonar o país devido às derrotas sucessivas em várias batalhas. Neste contexto, surge a expressão «sair à francesa», hoje usada para referir «ir-se embora sem dizer adeus ou sem se importar com os que ficam» (DLPACL). Curiosamente, esta expressão também existe em inglês «take French leave». Aliás, foi graças à ajuda dos soldados ingleses que o exército português foi capaz de expulsar os franceses das três vezes que tentaram invadir Portugal. No entanto, a saída dos franceses do território português só se deu por definitivo após a assinatura da polémica convenção de Sintra, que determinava a rendição dos franceses. Contudo, estes não abandonaram o país sem levar consigo algumas das relíquias portuguesas mais preciosas e, por isso, terá aparecido a expressão «ir de armas e bagagens» que, nos dias de hoje, se usa, segundo o DLPACL, para expressar ir «com tudo o que é seu, com todos os pertences».
Para além destas, pode-se ainda encontrar a expressão «à grande e à francesa» e cuja sua origem também remonta a este período histórico. Segundo o DLPACL, «à grande e à francesa» significa «sem restrições financeiras; de maneira faustosa». Esta expressão ter-se-á popularizado durante a primeira invasão, devido ao modo luxuoso como vivia o general Junot e os seus oficias, estando o povo a passar grandes privações por causa da guerra.
Exemplos como estes são perfeitas ilustrações da forma como a língua também é guardiã da memória histórica de um povo e dos seus traumas coletivos.