« (…) O que tem a língua portuguesa de especial para a converter em veículo privilegiado a fazer falar assim o coração? Terá isso a ver com um certo temperamento afectuoso atribuído, de forma estereotipada, aos falantes de português dos mais variados quadrantes e continentes?(…)»
A experiência de uma década a ensinar língua e de Literatura Portuguesa na Universidade de Macau permitiu-me o acesso a novas dimensões, problemáticas e desafios colocados pela aquisição de uma língua estrangeira tão outra e distinta, como é o caso do português na Ásia. Mas, acima de tudo, é profundamente gratificante sentir como uma parte de nós, como essa parte da matéria que enforma aquilo que somos, que nos concede substância e voz ao pensamento, como é o caso da nossa língua, pode germinar e crescer em falantes nativos de países, línguas e culturas tão distantes. Além disso, importa referir como, para além da esfera utilitária, de um passaporte para um emprego desejado, de um sentido prático que nunca pode ser ignorado, vi desenhar-se, através da sua aprendizagem, novas pontes, conducentes a universos íntimos. Aliás, o dramaturgo britânico Arnold Wesker afirmou que «a língua é uma ponte que permite atravessar com segurança de um lugar para o outro». Será, pois, a experiência de uma dessas travessias que gostaria de partilhar em seguida.
A interculturalidade do beijinho…
O episódio que conto aqui aconteceu no 34.º Concurso de Eloquência em Língua Portuguesa da Universidade de Estudos Estrangeiros de Quioto, no Japão, cujo júri integrei antes do início da pandemia.
Primeiramente, importa explicar que estes concursos são competições comuns em Universidades da Ásia, cujo objectivo é que os alunos elaborem e profiram, de forma o mais eloquente possível, um breve discurso, normalmente de perto de uns cinco a oito minutos, a propósito de um tema — que pode ser de escolha livre ou fornecido antecipadamente de acordo com regulamento estabelecido. Deste modo, treinam não apenas a proficiência linguística numa língua estrangeira, mas também a capacidade argumentativa e de persuasão.
Os discursos são avaliados por um júri que premeia as melhores prestações, de acordo com critérios rigorosamente estipulados.
Todo o ambiente da competição decorreu envolta numa grande solenidade, os concorrentes provinham de várias universidades do Japão onde se estuda português e muitos dos discursos proferidos foram verdadeiramente marcantes como nítidas cartografias de emoções.
Um deles, intitulado “O beijinho” constituía um ensaio sobre a interculturalidade, as diferenças, as tentativas de entendimento, de integração e relacionamento, o abismo que separa japoneses e portugueses nessa matéria. Centrava-se numa experiência de intercâmbio vivenciada pela aluna em Lisboa, marcada pelo choque inicial de ver as pessoas, nomeadamente, da família que a acolhera se cumprimentarem e a cumprimentarem com beijos, algo altamente improvável no Japão, onde as saudações se reduzem frequentemente a uma cordial vénia, sem que haja lugar para o toque, para a proximidade física. E, neste ponto, saliento que me refiro a um mundo pré-covídico, quando as manifestações de afecto ainda ocupavam o seu devido lugar.
Mas o mais interessante também, foi, no final desse discurso, o facto de a estudante enfatizar como o «beijinho» se havia tornado importante para ela, antes de deixar Lisboa, como ultrapassada a barreira da aversão e do estranhamento, lhe permitiu uma nova forma de se relacionar com os outros, uma aprendizagem mais aprofundada de uma cultura, a leitura de um abecedário de afectos e de pontes até aí desconhecidos para ela.
Porém, a expressão e, de certo modo, catarse de sentimentos não se ficou por aí.
… e voz, também, aos traumas
A língua portuguesa conferiu também voz aos traumas, à dor recordada, perante as perdas motivadas por uma catástrofe natural: o LINK terramoto de Tohoku, que atingiu 9.1. na escala de Ritcher e foi um dos mais fortes a assolar o Japão em 2011, tendo deixado um rasto estimado de cerca 29 000 vítimas. Essas vítimas tinham nome, vidas, identidades, algumas eram familiares daqueles estudantes que as evocaram, homenagearam, deixando transparecer o amor e a saudade, como se, em português, encontrassem o alfabeto certo para esse desfolhar de sentimentos. E nesse desvelar de mundos interiores calados, contidos, escamoteados, que pareciam de súbito, jorrar, transpostos nas sílabas de uma língua distante tecida de emoções, houve também espaço para as palavras de amor, nunca ditas a um pai já falecido, com quem a relação fora distante e problemática.
No final, a questão impôs-se: o que tem a língua portuguesa de especial para a converter em veículo privilegiado a fazer falar assim o coração? Terá isso a ver com um certo temperamento afectuoso atribuído, de forma estereotipada, aos falantes de português dos mais variados quadrantes e continentes? Com efeito, após o final da competição, numa conversa informal, os concorrentes afirmaram que jamais seriam capazes de exprimir aqueles sentimentos e emoções na sua língua materna. Os motivos? As respostas eram vagas, não sabiam. Talvez por pudor, por respeito a convenções, por múltiplas razões ou quem sabe até, por nenhuma que nos pudesse ser explicada naquele momento. E se a língua estrangeira fosse outra? A resposta era que também não, tinha de ser em português...
E, no fim, entregues os prémios, cumpridas as formalidades, permaneceu a emocionada partilha entre nós, falantes nativos de português (neste caso específico, de Portugal e do Brasil), membros daquele júri, por sentirmos a nossa língua a habitar, a enformar, a dar voz a sentimentos silenciados, a ser ponte, porta e janela para a expansão de mundos secretos, a despertarem muito além da casca das aparências, a ser o delicado fio de seda que une a identidade e a alteridade. E, sobretudo, a aproximar, a irmanar, além de todas as fronteiras e geografias.
Artigo da professora e escritora Dora Gago, publicado originalmente do Jornal de Letras de 18/05/2022. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.