« (...) Na Rua dos Livros [em Saigão], onde é frequente os habitantes tirarem fotografias de casamento e aniversário, posando com um livro. Por outras palavras, embora não seja lido, não cumpra a sua verdadeira função, o livro continua a assumir-se como elemento simbólico de cultura, de classe, de bom gosto. (...) »
No livro O infinito num junco, Irene Vallejo refere detalhes sobre uma biblioteca egípcia relatados por um viajante grego, Hecateu de Abdara que, no tempo de Ptolomeu I, visitou o Templo de Amin em Tebas. Nesse templo, viu, numa galeria a biblioteca sagrada sobre a qual se encontrava escrito «lugar de cuidado da alma». Instintivamente, aderi a esta ideia das bibliotecas como hospitais de alma que poderia até ser corroborada com os recentes desenvolvimentos da biblioterapia, baseada no poder terapêutico dos livros, que poderão ser receitados como medicamentos para ajudar a ultrapassar diversos problemas do foro psicológico. Aliás, segundo consta esta terapia já seria utilizada durante o tempo de Platão, tendo conhecido um consideravelmente desenvolvimento durante a Primeira Guerra Mundial.
Instintivamente, ao ler esta passagem de Irene Vallejo vi-me transportada para as várias bibliotecas que visitei ou que poderemos dizer mesmo, habitei provisoriamente nestes últimos anos em Portugal, nos Estados Unidos, em Inglaterra e, claro, terminando nas de Macau. Cada uma com suas regras, suas estantes, sua forma de se relacionar com os leitores e com o mundo. Todas elas reinos de silêncio abertos a todas as vozes dos mais diversos quadrantes e culturas.
Em Macau há alguma abundância de bibliotecas, algumas com instalações muito acolhedoras e, o mais impressionante é estarem geralmente cheias, como nunca vi em Portugal nem noutros lugares. Contudo, na verdade, neste território, há sempre muita gente em todo o lado. O público que as frequenta é maioritariamente mais idoso e procura sobretudo a leitura de jornais em mandarim ou cantonês. Mas também se vêem alguns jovens e crianças acompanhadas pelos pais.
Com efeito, o que tal facto significa em termos de hábitos de leitura nunca soube concretamente, pois, relativamente aos alunos universitários com quem trabalhei durante os últimos anos, o que se evidenciava era a escassez de leitura, uma espécie de vírus que tem alastrado por todo o mundo, desde as escolas às universidades com consequências cada vez mais imprevisíveis. E neste contexto, importa salientar também o que refere o jornalista Paulo Moura na sua obra As Cidades do Sol (2020), formada por um conjunto de viagens pela Ásia no intuito de descobrir as novas utopias. Nessa obra, atraiu-me também a referência à presença ou ausência do livro em dois momentos. Um deles, quando em Saigão, no Vietname, o autor menciona o facto de ter reservado alojamento num hostel inserido numa livraria chamada Domino. No momento em que questiona os donos do espaço, bastante jovens, se os livros são para venda, Paulo Moura depara-se com a perplexidade dos seus interlocutores e a resposta de que os poderá ler ou folhear, mas nunca comprar.
Assim, a primeira ideia que acorre à mente é a de que os livros não são para venda por serem valiosos, mas afinal, é precisamente o contrário: simplesmente, eles nunca pensaram que os livros pudessem valer alguma coisa, sendo úteis apenas como objectos decorativos. Nesta esteira, é ainda descrita uma Rua dos Livros também situada em Saigão, onde é frequente os habitantes tirarem fotografias de casamento e aniversário, posando com um livro. Por outras palavras, embora não seja lido, não cumpra a sua verdadeira função, o livro continua a assumir-se como elemento simbólico de cultura, de classe, de bom gosto.
Por outro lado, a funcionar como contraponto, encontramos ainda, em As cidades do Sol, a reprodução da conversa com Richard Oh, intelectual indonésio, proprietário de uma livraria/biblioteca que acredita fervorosamente no poder dos livros, movendo-se entre a euforia dos novos estilos de vida, virtuais, tecnológicos e a nostalgia de uma cultura ancestral, pautada por referências essenciais. Tal como afirma Richard Oh, aludindo a esta espécie de guerra entre o mundo tecnológico e o dos saberes tradicionais: «Do outro lado, é só espalhafato, ostentação, fogo de artificio. A força calma dos livros acabará por ser reconhecida». Resta, assim acrescentar, «que assim seja».
Espaços perigosos ao longo dos tempos, sem dúvida, as bibliotecas! De hospitais de alma a focos de resistência, interditos, destruídos, queimados, sobretudo por potenciarem a circulação de diversos anti-vírus: a lucidez, o espírito crítico, a imaginação, a galopar desenfreadamente pelos milhares de páginas que habitam na poeira das estantes. Por tudo isto, talvez daqui a uns anos, elas consubstanciem os últimos museus de um tempo já muito além da galáxia dos livros de luz, assumindo-se os mundos de tinta e papel ainda nelas contidos, como remotos resquícios de uma dimensão neo-jurássica da Humanidade que fomos.
Cf. Pensar o livro: as bibliotecas ou o elogio da democracia
Artigo da escritora e professora Dora Gago, transcrito, com a devida vénia, da revista de artes, letras e ideias Caliban, com a data de 22 de janeiro de 2023. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.