« (...) [É] injusto simplesmente acusar os jovens de não possuírem aquilo que não têm condições de possuir, um vocabulário comparável ao de pessoas mais velhas. Em vez disso, preocupemo-nos, sim, em fornecer às nossas crianças e jovens recursos e estratégias que lhes permitam enriquecer o seu vocabulário. (...)»
Ouço muitas vezes pessoas mais velhas (pais, avós, professores) queixarem-se de os jovens, hoje em dia, terem um vocabulário reduzido, paupérrimo. Digo "hoje em dia" com alguma ironia, porque a verdade é que durante toda a minha vida ouvi dizer o mesmo (eu própria já fiz afirmações destas no passado) e acredito que seja uma constatação que se ouve desde que a sociedade ganhou tempo e interesse em discutir este tipo de coisas. Como a ideia de que os jovens têm vocabulário reduzido se encontra tão generalizada, vale a pena tentar entender as razões que a motivam e avaliar até que ponto ela é justa.
O conhecimento que temos, enquanto falantes de uma língua, do léxico desta tem características particulares quando comparado com outros tipos de conhecimentos, como, por exemplo, o das estruturas das frases. O vocabulário de cada um é determinado pelas suas experiências, pela sua história de vida (por exemplo, alguém que tenha crescido em meio rural terá um vocabulário diferente do de alguém que tenha vivido sempre na cidade; um micaelense terá um vocabulário diferente do de um vimaranense), pelo que não há duas pessoas que conheçam exatamente as mesmas palavras ou vocábulos.
Claro que há um conjunto de palavras da língua comuns a todos os falantes, o chamado vocabulário da língua corrente (de outra forma, a intercompreensão dos falantes seria impossível); porém, cada falante possui um conjunto de vocábulos que lhe é específico, singular. Quanto maior for o acesso de uma criança a estímulos linguísticos e a bens educativos, culturais, orais e escritos, desde a mais tenra infância, maior será a probabilidade de ela vir a desenvolver um vocabulário vasto, rico, diversificado, que em muito irá contribuir para o seu êxito escolar e também social.
À escola cabe, acredito, dar a todas as crianças acesso a livros, atividades, recursos multimédia, até como forma de tentar suprir as lacunas de partida daquelas que, no meio de proveniência, recebem estímulos linguísticos e vocabulares escassos ou pobres.
Além disso, ao contrário do conhecimento da estrutura das frases, em situação normal, cada um aprende palavras novas ao longo de toda a sua vida, ou porque vai desenvolvendo conhecimentos e interesses diversos, ou porque a própria língua vai adquirindo novos vocábulos para expressar realidades novas - pensemos quando é que cada um de nós contactou pela primeira vez com palavras hoje tão banais quanto telemóvel, Android, iOS, hotspot, tablet, chat, entre outras.
É, pois, normal que uma pessoa de 60 anos, no pleno gozo das suas faculdades intelectuais, tenha um vocabulário mais vasto do que uma pessoa de 40 ou 50, e que o de uma pessoa de 40 seja mais vasto do que o de uma pessoa de 20 ou 30. Por outro lado, os jovens não conhecerão as mesmas palavras que os mais velhos, porque vivem num mundo diferente, mas conhecem certamente muitas outras que os mais velhos desconhecem.
É assim injusto simplesmente acusar os jovens de não possuírem aquilo que não têm condições de possuir, um vocabulário comparável ao de pessoas mais velhas. Em vez disso, preocupemo-nos, sim, em fornecer às nossas crianças e jovens recursos e estratégias que lhes permitam enriquecer o seu vocabulário.
Artigo da linguista Margarita Correia publicado originalmente no dia 14 de novembro de 2020 no Diário de Notícias.