O pesadelo da língua única - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O pesadelo da língua única
O pesadelo da língua única
Entre o monolinguismo e o bilinguismo

«A evolução da história tem, de facto, levado a uma crescente desigualdade entre as línguas. Desde a invenção da escrita, as línguas que permitiam comunicar por meio de um tablet ou de um papiro ganharam uma vantagem decisiva, o que não significa que os milhares de línguas que permaneceram orais tenham menos valor.»

 

 O mito do Génesis, segundo o qual todos os humanos falavam a mesma língua antes da construção da Torre de Babel, ainda hoje espalha o seu veneno. Nos anos 1930, o linguista soviético Nicolas Marr tentou apoiar-se nele quando defendeu que uma multidão originária levaria ao advento de uma linguagem universal quando o socialismo triunfasse em todos os países. Os guardiões da “globalização feliz” defendem, por seu turno, que os bons negócios e a salvação só existem com o inglês. Apresentada como um castigo divino, a diversidade linguística é, pelo contrário, a base da humanidade, uma contribuição cultural única para a vida na Terra.

A evolução da história tem, de facto, levado a uma crescente desigualdade entre as línguas. Desde a invenção da escrita, as línguas que permitiam comunicar por meio de um tablet ou de um papiro ganharam uma vantagem decisiva, o que não significa que os milhares de línguas que permaneceram orais tenham menos valor. Muitas das que estão ameaçadas hoje usam, por exemplo, um número de fonemas (sons) duas ou três vezes mais rico do que as línguas “internacionais”. Como sublinha Jean-Pierre Minaudier a propósito das línguas papuas: «Essas línguas não são fósseis! O facto de não serem escritas e de serem faladas por populações muito reduzidas não altera o carácter crucial da informação que nos fornecem sobre o possível funcionamento da mente humana1

A invenção da imprensa reforçou as desigualdades. Para além disso, a construção de estados-nação apoiou-se frequentemente na escolha de uma língua por país. Isto também facilitou a alfabetização geradora de emancipação, como a que generalizou o uso do francês graças à Revolução. Mas, com a expansão vem o abuso, que deixa sua marca. Os polacos, os ucranianos ou os lituanos recordarão com dor os períodos de russificação forçada, em particular entre 1863 e 1905. No Québec, lembramo-nos do fundador de Manitoba Louis Riel, que foi enforcado em 1885 pela dedicação à causa dos Métis e da língua francesa. Nas colónias ou em certas regiões da França, as línguas maternas foram desprezadas.

A paisagem linguística da era industrial, com suas línguas veiculares compartilhadas por várias nações, está a ser abalada pelo domínio geopolítico dos Estados Unidos e pela globalização neoliberal da economia. 

A pressão das multinacionais do entretenimento reforçada pelo poder de infiltração da publicidade renova o mito dos benefícios de um único idioma. A “língua útil”, a “língua do dólar” ter-se-ia tornado o globish, ou o inglês global, uma variante empobrecida da língua de Shakespeare. A exceção cultural brandida como padrão pela Europa é pobremente defendida por alguns artistas, que confundem medição de audiências com sucesso, enquanto a maioria dos cientistas cederam as armas para alcançar o Santo Graal da "publicação". De igual modo, muitos ativistas, principalmente ambientalistas, não percebem que a massa da população não os segue quando escolhem nomes e slogans na língua do “império”. «Instrumento de comunicação, a linguagem é também um sinal exterior de riqueza e um instrumento de poder2

Essa afirmação de Pierre Bourdieu lança luz sobre os problemas do presente, aqueles que explodem sob os holofotes ou aqueles que agitam as entranhas das sociedades e perturbam a sua identidade. Quando uma língua é negligenciada ou desprezada, o despertar pode ser brutal: guerra no Bangladesh em 1970, no Sri Lanka durante várias décadas, ou no Donbass desde 2014. Porque sem poder, sem uma instituição para a defender, uma língua não é nada. Sem uma política linguística, está condenada à marginalidade. O dominado também pode tornar-se dominante. Revoltados contra os russos, os georgianos3 alienaram os ossétios4 e os abecazes5. Os ucranianos cometeram esta mesma imprudência para com as populações do leste do país. Os argelinos de língua árabe desprezaram os berberes. Os noruegueses, emancipando-se da tutela sueca ou os franco-canadenses lutando contra a dos falantes de inglês, não se preocuparam com as línguas indígenas até muito tarde...

O bilinguismo parece ser uma armadilha na qual muitas elites caem. Muitas vezes vivido como riqueza pessoal, é também escravização quando se torna diglossia: uma língua menosprezando a outra. A luta contra a desigualdade de trocas impõe a diversidade cultural e o multilinguismo. Esta é a posição das Nações Unidas ou da Organização Internacional da Francofonia, que pretende promover as “línguas parceiras”.

«Quando defendemos o francês no nosso país, estamos a defender todas as línguas do mundo contra a hegemonia de uma só», sublinhou o ensaísta quebequense Pierre Bourgault. Mas a francofonia fogosa da periferia padece face à lentidão que domina o centro. Os francófonos, a maioria fora da França, não sem razão, veem a França como arrogante e seus governantes como balas de canhão, como o Sr. Emmanuel Macron e a sua máxima Choose France ou o ministro Claude Allègre, que declarou em 1997: «O inglês com o Minitel6 e o computador, é para o futuro como ler, escrever e contar.»

O futuro que se desenhava quando a Internet surgiu parecia um pesadelo. Mas cada vez mais idiomas estão a investir na web, onde o chinês está agora imediatamente atrás do inglês. Os avanços nos sistemas especializados em tradução automática mudarão a situação a médio prazo. Ainda balbuciantes no que respeita às trocas vocais, eles costumam ser mais relevantes na escrita do que o globish. Para dar um novo passo, as máquinas de aprendizagem também devem romper com o bilinguismo e não passar mais pelo inglês para aprimorar as trocas de uma língua para outra. Ainda assim, esses autómatos nunca trarão aos seus utilizadores o calor do encontro com um estrangeiro que nos compreenda na sua língua.

1 Jean-Pierre Minaudier, Poésie du gérondif, Le Tripode, Paris, 2017.

2 Pierre Bourdieu, Ce que parler veut dire, Fayard, Paris, 1982.

3. Habitantes da Geórgia, antiga república soviética com aldeias na cordilheira do Cáucaso e praias no Mar Negro.

4. Grupo étnico caucasiano da Abecásia, região pertencente à Geórgia.

5. Grupo étnico caucasiano da Abecásia, região pertencente à Geórgia.

6. Terminal de consulta de dados

Fonte

Tradução do editorial "Cauchemar de la langue unique", publicado no mensário francês Le Monde Diplomatique, n.º 186, dezembro 2022-/janeiro 2023. Edição, do original, do jornalista Philippe Descamps.

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