«(...) [A]s chamadas línguas regionais são hoje objeto do mesmo desprezo que sofreu o francês até ao Renascimento. (...)»
Vamos esclarecer já a situação: não fiquei megalómano. E se, para o título desta crónica, me inspiro em Défense et illustration de la langue française [Defesa e Ilustração da Língua Francesa] de Joachim du Bellay (c. 1322-1560), não me julgo tão importante como o grande poeta. Parece-me é que os argumentos que ele usou para o francês se aplicam muito bem às outras línguas da França.
Retomando. Antes do século XVI, a maioria dos estudiosos afirmava alto e bom som: as grandes obras só podiam ser escritas em latim. Francês? Credo! Um falar miserável que apenas serve para evocar a vida quotidiana. Um idioma vulgar, suficiente talvez para dizer «passa-me o sal» e levar as cabras para o curral, mas que nunca poderá evocar os tormentos da alma, narrar as façanhas dos heróis e muito menos celebrar Deus Pai, o Filho, o Espírito Santo, os apóstolos e todos os Santos.
E que responde o grande Joachim a tais sábios em 1549? Que eles estão completamente errados! O poeta reconhece que o francês ainda é, sem dúvida, uma língua em formação e não tem toda a riqueza das línguas antigas, mas não importa: basta enriquecer o seu léxico criando palavras compostas, recorrendo a raízes antigas, inventando abreviaturas, baseando-se nas "velhas palavras", tomando empréstimos de outras línguas... Ele e os seus amigos do La Pléiade estão convencidos de que o francês tem todas as qualidades para competir com o latim e o grego. E provam-no multiplicando as obras-primas.
Um desprezo nascido da ausência de cultura linguística
Sendo a elegância do meu raciocínio para a subtileza o que a tartiflette1 é para uma dieta de emagrecimento, os leitores já perceberam aonde quero chegar: as chamadas línguas regionais são hoje objeto do mesmo desprezo que sofreu o francês até ao Renascimento. Desprezo nascido do mesmo mal: uma quase total ausência de cultura linguística, inclusive entre as chamadas "elites".
Daí a utilidade dos seguintes lembretes:
– Nos séculos XII e XIII, trovadores como Jaufré Rudel, Bernat de Ventadour, Bertran de Born ou Raimbaut d'Orange dominam a Europa literária. E, claro, estes poetas expressam-se na língua d'oc [occitano], e não em francês. As outras cortes do Velho Continente – incluindo a do rei da França – são influenciadas por eles e procuram imitá-los.
– Enquanto isso, mais ao norte, o normando, os champanhês e especialmente o picardo dominam a literatura na langue d'oïl [sistema dialetal do norte da França, abrangendo o sul da Bélgica]. «Dialeto usado em literatura, direito, economia e diplomacia, o picardo não é uma simples variação geográfica e regional, mas uma das formas fundamentais do francês em documentos públicos escritos», sublinham, por exemplo, Joëlle Ducos e Olivier Soutet2.
– O Ministério da Educação Nacional recusa-se a designar o normando como língua e exige que, a seu respeito, se use o termo falar (não estou a inventar nada), o que não impede que as nossas figuras oficiais se orgulhem de evocar a forte influência que o "francês" teria exercido no vocabulário inglês, de army a car, passando por history. No entanto, Guilherme, o Conquistador, não nos deixa esquecer que o normando – e não aquilo que se tornaria o francês – é de facto o dialeto que legou cerca de metade do seu léxico aos nossos vizinhos de além-Mancha.
– Há um tempo em gascão (no sudoeste da França] que não existe em francês: o «futuro do passado». Na frase «il savait que la nuit tomberait bientôt» [«ele sabia que a noite cairia em breve»], os franceses de facto recorrem a um condicional, tomberait [«cairia»]. Mas o gascão tem um tempo específico para essa situação.
O platt, a língua mais próxima da que falava Clóvis3
– O frâncico do Mosela (ou platt) é considerado a língua mais próxima da falada por Clóvis, como assinala a linguista Henriette Walter no seu livro Aventures et Mésaventures des Langues de la France [«Aventuras e Desventuras das Línguas da França.»].
– As duas línguas indígenas de Mayotte, o shimaore e o kibushi são escritas há pelo menos cinco séculos (em carateres árabes).
– Quase todas as línguas da Europa vêm do mesmo ramo: o protoindo-europeu, que depois se diferenciou gradualmente para dar origem às línguas eslavas, germânicas, celtas, latinas, etc. O basco, por sua vez, tem a particularidade de ser ainda mais antigo (é uma língua pré-indo-europeia) e de não poder vincular-se a nenhuma dessas famílias linguísticas. Como tal, fascina a maioria dos cientistas.
Poderíamos continuar esta enumeração por muito tempo ainda4, mas teremos compreendido o essencial: do ponto de vista linguístico, não há língua superior às demais. Ao contrário da crença popular, todos elas, sem exceção, podem expressar absolutamente qualquer coisa: raiva, medo, alegria, terror, amor, ódio, desejo, beleza, ternura, ganância, pensamentos mais subtis ou mais triviais. Todas elas, sem exceção, são criações culturais da humanidade. Todas elas, sem exceção, merecem ser defendidas e respeitadas, e não apenas as que, pelos acasos da história e muitas vezes pelo simples jogo da balança de poder, se tornaram línguas oficiais de um Estado.
Terminemos com uma pergunta deliberadamente mal intencionada: quantas horas são dedicadas ao ensino destas noções no ensino fundamental e médio?
1 Tartiflette: prato típico da Saboia francesa e do Vale de Aosta (Itália), feito com batatas, queijo, toucinho magro fumado, cebola e vinho branco (ver texto em francês na Wikipédia)
2 Joëlle Ducos e Olivier Soutet, L'ancien et le moyen français, Que sais-je ? (PUF), p. 25.
3 Clóvis (c. 488-511), o rei que unificou as tribos dos Francos. Considera-se que é o fundador da França.
4 Peço aos falantes das línguas da França que não mencionei aqui por falta de espaço e/ou conhecimento que não me recriminem. As informações acima são, obviamente, meramente ilustrativas.
N. E. – Na primeira imagem, um mapa que localiza as línguas regionais da França. Da esquerda para a direita e de cima para baixo: bretão, língua de oïl (compreendendo o galo, o normando, o picardo, o angevino, o franciano, o champanhês, o loreno, os dialetos do Poitou, o berrichão, o borguinhão e os dialetos do Franco-Condado), o neerlandês flamengo, o frâncico, o alsaciano, a língua de oc (que compreende os dialetos de transição da Marca, o occitano do norte, o limosino, o alvernês, o provençal alpino, o gascão, o occitano médio, o languedociano e o provençal), o franco-provençal (ou arpitano), o basco, o catalão (que pode incluir-se no sistema do occitano) e o corso.