Há línguas em que é mais fácil brincar com as palavras? - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Há línguas em que é mais fácil brincar com as palavras?
Há línguas em que é mais fácil brincar com as palavras?
Os trocadilhos do francês

 «Um jogo de palavras assenta sempre numa relação entre um segmento sonoro pronunciado e um outro evocado na mente do ouvinte.»

 

 [!!! Este texto pode ser muito difícil de entender para pessoas que não dominem muito bem a língua francesa. Dada a natureza dos textos franceses referidos e citados, é perfeitamente vã a tentativa de os traduzir.]


Franca.jpgJá aqui fiz no blogue alguns comentários à tão popularizada ideia de que a língua determina a nossa perceção do mundo e à alegre falta de rigor com que muitas vezes se faz o escrutínio desta ideia. E hoje venho, vejam lá, sugerir que talvez a língua possa de facto interferir na nossa relação com o mundo. Mais concretamente, venho sugerir que bem pode haver línguas em que é mais fácil que noutras «brincar» com a própria língua: fazer humor e literariedade. E, mais concretamente ainda, sugiro que é provável que em francês seja mais fácil fazer trocadilhos e rimar [pelo menos, no sentido em que entendemos rima hoje em dia na nossa cultura] que nas outras línguas que conheço. E isto porque

  • o francês é uma língua de acento fixo, o que torna as coisas muito mais fáceis; e
  • a evolução fonética do francês foi, antes de mais, no sentido de um vocalismo muito forte, e portanto uma perda de muitos sons consonânticos, gerando assim
    • um número muito grande de palavras e sequências homófonas (fundamental para os trocadilhos) e
    • menos sons possíveis em final de palavra (fundamental para a rima).

Convém esclarecer que não estou de modo algum a apresentar a conclusão de algum estudo que tenha feito, longe disso, mas sim a propor um projeto de investigação, a mim próprio ou a quem nele queira pegar, que se baseia num observável simples: há mais formas [foneticamente] convergentes em francês que nas outras línguas que conheço.

Para dar dois exemplos muito simples [mas há muitos, muitos!], a forma /vɛ̃/ pode provir de vários étimos diferentes: de vinum [vin], de vi[gi]nti [vingt], de vanus[vain], de vēnī [vins], de vēnistī [vins] e de vēnit [vint]), da mesma forma que /po/ pode derivar de pellis ou de potus e /depo/ tanto pode corresponder a des pots como a des peaux como a dépôt.

É certo que, se que esta convergência de formas se deu, é porque não causa ambiguidades, senão ela não podia existir. Mas, existindo no discurso comum sem causar ambiguidades, está disponível para ativamente se construírem, a partir dela, trocadilhos e jogos de palavras ou com as palavras. Não deve ser por acaso que são em francês os exemplos mais famosos de holorrimas, isto é, rimas em que não rima só o fim do verso, mas sim o verso inteiro. Creio que a holorrima mais famosa é de Marc Monnier, nos célebres versos

Gall, amant de la Reine, alla, tour magnanime!,
Galamment de l'Arène à la Tour Magne, à Nîmes.

que se pronunciam exatamente da mesma maneira. Outros exemplos são

Par les bois du Djinn, où s'entasse de l'effroi,
Parle et bois du gin !… ou cent tasses de lait froid.

de Alphonse Allais, ou

Dans ces bois automnaux, graves et romantiques,
Danse et bois aux tonneaux, graves et rhums antiques

de Jacques Prévert. Mas há muitas mais. Vejam por exemplo, aqui, aqui ou aqui.

Transcrevo abaixo a letra da canção Saucisson de Cheval, de Boby Lapointe, um exemplo radical do que é brincar com as palavras em francês – como aliás todas as canções de Boby Lapointe, o maior mestre dos jogos de palavras, que aconselho a explorar, se não conhecerem.

Um jogo de palavras assenta sempre numa relação entre um segmento sonoro pronunciado e um outro evocado na mente do ouvinte. Pode haver semelhança fonética ou total homofonia dos dois segmentos que constituem o trocadilho, com ou sem coincidência sintática. Por vezes o segmento não dito pode ser uma expressão fixa, o que facilita a sua evocação na mente do ouvinte; e por vezes a evocação do segmento pode também ser facilitada pela introdução prévia de um elemento no texto – ou pode mesmo haver, como no caso da canção transcrita abaixo, uma delimitação à partida de um determinado campo semântico [neste caso, o cavalo]. Como alguns jogos de palavras da canção podem não ser óbvios, mesmo para quem domine relativamente bem o francês, sublinho em cada verso a parte que deveria evocar outra coisa no ouvinte e deixo entre parênteses retos o segmento evocado. Não transcrevo os onomatopaicos refrães nem as breves passagens faladas, que, contribuindo sem dúvida para o humor e para o ambiente geral da canção, não são relevantes para o tema aqui discutido.

Se existem, em países de língua latinas ou germânicas, alguém que faça jogos de palavras como Boby Lapointe, não conheço. Mas será mesmo possível fazer canções como « Saucisson de cheval » noutras línguas? A pergunta não é de modo algum retórica: línguas há muitas e eu conheço muito poucas. Digam-me, pois: que sabem e opinam sobre o assunto? 

«Saucisson de cheval», 1966

 C'est un saucisson de cheval, un saucisson que... (de cheval) [queue]
que je viens de faire, (à cheval) [fer]
c'est une chanson de saillies.
Ah, chanson de saillies, (de cheval) [saillie]
moi qui suis esthète, (de cheval) [tête]
ah, je trouve ça beau (de cheval) [sabot]
génial, admirable, (de lapin) [râble]

Moi, qui viens de Grèce, (de cheval) [graisse]
je m'appelle au reste (de cheval) [Oreste] 
Tapaboufélos.
(de cheval) [t’as pas bouffé l’os]
je débarque à Paris (de veau) [ris],
Oh, oh, quelgal, oh, (de cheval) [galop]
de prendre le métro. (de cheval) [trot]
Quand on ne connaît pas, (de cheval) [pas]
oh, ce qu'on s'amuse, oh ! (de bœuf) [museau]

Mes enfants, ma foi, [foie] (de cheval) [foie]
sont de vilains grognons. (de cheval) [rognons]
Quand ils pleurent en chœur, (de cheval) [cœur]
j'essaie de les distraire (les vaches) [traire]
Je viens à bout d'un, (de cheval) [boudin]
mais les autres aussi sont (de cheval) [saucisson]
toujours dans le besoin, (de cheval) [soin (?)]
ça ne peut pas être pis. (de chèvre) [pis]

Quel est cet aztèque (de cheval) [steak]
qu'on vient de voir filer (de cheval) [filet]
du haut de la côte (de cheval) [côte]
dans le précipice, en moto ?
Peut-être bien est-ce Thomas (de cheval) [estomac]
qui vient de me vendre (de cheval) [ventre]
un complet à carreaux (de cheval) [garrot]
et un gilet pied de poule.

Je désirais m'assoir (de cheval) [mâchoire]
et tu m'amenas au (de cheval) [naseaux]
canapé en rotin (de cheval) [crottin]
et mon cœur, vous fumiez mes cigares. [fumier]
N'étais-je pas l'affreux niais, (de cheval) [palefrenier]
qui fourbu s'affaisse (de cheval)? [fesse]
Ça fait rire les groupes (de cheval) [croupe]
ah, comme l'écurie est gaie ! [les culs rient] (aqui, inverte-se a lógica: o segmento relacionado com cavalo é o dito e não o evocado)

 

 

 

P. S.: Boby Lapointe desenvolveu o tema dos trocadilhos equestres, se se pode dizer assim, numa segunda canção com o mesmo fundo musical, Saucisson de Cheval n.º 2. O segundo salsichão de cavalo não é em nada inferior ao primeiro, mas não quero abusar da paciência dos meus leitores, pelo que não o transcrevo. A letra é fácil de encontrar na Internet.

Fonte

Apontamento publicado no blogue Travessa do Fala-Só em 16 de junho de 2022

Sobre o autor

Vítor Santos Lindgaard é tradutor e professor, residente na Dinamarca, autor dos blogues Moçambicanismos e Travessa do Fala-Só.