«Uma vitória na Eurovisão não serve para nada — nem tinha de servir. A Eurovisão é uma maluqueira muito europeia. Com algum esforço, vislumbro uma vantagem daquela explosão de luzes e fogo de artifício: o festival andou anos a criar memórias comuns aos europeus, o que não é coisa pouca.»
Quando eu era novo, pensava que ganhar a Eurovisão era importante. Não é, claro. Mas esta vitória foi como um sonho vindo das profundezas da nossa infância. Como se recebesse aos 36 a prenda que me prometeram aos 10.
Pois vou aproveitar esta loucura toda com o concurso, loucura essa que deve terminar daqui a uns dois ou três dias, para falar de — surpresa! — línguas. E línguas ibéricas, pois então — afinal, a Península Ibérica arrasou no festival: ficámos em primeiro e os nossos vizinhos em último…
O catalão e o galego na Eurovisão
Há línguas muito antigas e com pergaminhos de fazer inveja e que não aparecem na Eurovisão. Basta andar uns quilómetros na nossa península e temos o basco, a mais isolada das línguas europeias. Que eu saiba, ninguém alguma vez cantou em basco na Eurovisão, o que é uma pena. Já não acontece o mesmo com o catalão, que foi ouvido entre 2004 e 2009 por causa de Andorra, que lá andou metida.
A primeira canção em catalão ouvida por essa Europa foi «Jugarem a estimar-nos» (não fiquem preocupados comigo: é para saber estas coisas que serve a Wikipédia).
O que quer dizer este título? O verbo «jugar» — que se lê à portuguesa, tal e qual o nosso «jogar» — quer dizer «brincar».
No caso, a forma «jugarem» (primeira pessoa do plural do futuro) lê-se com a sílaba tónica na última vogal e o «m» bem marcado. Será algo como a inexistente palavra portuguesa «jugareme». Corresponde ao nosso «brincaremos».
O verbo «estimar» quer dizer «amar». Logo, o título quer dizer algo como «vamos brincar ao amor» ou «vamos lá fingir que nos amamos, mas só durante esta noite». Os andorranos são assim, o que querem?
E o galego? Ah, foi com um sorriso na boca que vi muitos amigos galegos a afirmar que uma canção na sua língua tinha ganho o festival. Andaram a circular memes com uma frase do género: «O galego não serve para nada? Serve para ganhar a Eurovisão!»
Já o espanhol… Enfim, este ano apareceu por lá de raspão e levou cinco pontinhos muito portugueses.
As línguas da Ucrânia — e da Catalunha
Num festival organizado na Ucrânia, lá ouvimos umas palavras, aqui e ali, nessa língua. No final, até Salvador Sobral disse umas palavras em ucraniano.
Ora, já aqui falámos como aquele país, o segundo maior da Europa, tem questões linguísticas complexas. Não só neste artigo que escrevi sobre a questão linguística naquele país, como também no artigo sobre a ligação entre o nosso acordo ortográfico e a Ucrânia — e ainda o artigo de Serge Lunin sobre o bilinguismo na Ucrânia… e em Portugal!
Julgo que a situação da Ucrânia pode ajudar-nos a perceber o que aconteceria se a Catalunha ficasse independente. Diga-se que o catalão é uma língua minoritária muito mais bem protegida do que outras línguas minoritárias por esse mundo fora — e mesmo em Espanha. Está presente no ensino (de forma intensiva), é usada na literatura, na televisão e por uma percentagem muito significativa da população.
No entanto, não está, digamos assim, garantida. Ao contrário do que acontece com outras línguas não castelhanas de Espanha, o catalão tem prestígio e um apoio social de fazer inveja. Mas ainda corre perigo de o seu uso diminuir e de passar a ser uma língua residual, como é hoje, por exemplo, o irlandês na Irlanda, por mais prestígio que tenha nas instituições da ilha.
O catalão tem ainda este problema: não é reconhecido noutros países. Basta olhar à nossa volta: é difícil para muitos portugueses identificar aquela língua — ora, a língua é uma marca de identidade e a dificuldade de ser identificada pelos outros é um problema mais sério do que possa parecer à primeira vista. Pensem no que sentimos nós quando um estrangeiro nos diz «ah, a vossa língua é muito parecida com o espanhol» com um ar de uma certa indiferença. Os catalães nem sequer chegam a ouvir a frase porque os estrangeiros raramente sabem distinguir as duas línguas. E é pena.
Essa necessidade de identificação pelos falantes de outras línguas tem — quanto a mim — um grande peso no sentimento independentista de muitos povos. O independentismo pode ter razões histórias, económicas, sociais, etc. Mas não deixa de ser, lá bem no fundo, uma necessidade de reconhecimento internacional da nação com a qual nos identificamos. Muitos catalães sentem-se um povo e não como um subgrupo dentro doutro povo maior — e este sentimento transporta-se inevitavelmente para a necessidade de reconhecimento da sua língua.
E, depois, há isto: perguntem a uns quantos madrilenos se achariam bem Espanha levar uma música em catalão à Eurovisão — afinal, o catalão é a língua materna de vários milhões de espanhóis, não é verdade?
Se aceitarem o desafio, registem as respostas — talvez assim comecemos todos a perceber porque é difícil para os catalães encaixarem o seu sentimento nacional nesta Espanha tão castelhana.
E a Escócia?
Curiosamente, a Escócia, apesar de politicamente estar numa situação semelhante à catalã (é uma parte dum Estado maior com leis próprias, um grau de autonomia elevado e um sentimento de pertença nacional muito marcado), sente menos a indiferença dos outros povos.
Porquê? Talvez porque ostenta algumas das marcas de país na cabeça de todos nós: o seu nome é reconhecido no mundo inteiro, as suas tradições mais ou menos inventadas são bem visíveis (kilts e outros que tais), o Estado onde está integrada não esconde o facto de ser um Estado com uma identidade complexa (para dizer o mínimo), etc., etc.
Ah, e tem uma selecção de futebol que joga nos campeonatos que interessam. Não é coisa pouca.
Curiosamente, a Escócia, apesar de politicamente estar numa situação semelhante à catalã (é uma parte dum Estado maior com leis próprias, um grau de autonomia elevado e um sentimento de pertença nacional muito marcado), sente menos a indiferença dos outros povos.
Porquê? Talvez porque ostenta algumas das marcas de país na cabeça de todos nós: o seu nome é reconhecido no mundo inteiro, as suas tradições mais ou menos inventadas são bem visíveis (kilts e outros que tais), o Estado onde está integrada não esconde o facto de ser um Estado com uma identidade complexa (para dizer o mínimo), etc., etc.
Ah, e tem uma selecção de futebol que joga nos campeonatos que interessam. Não é coisa pouca.
É difícil ser bilingue?
Bem, mas já estamos muito longe do tema do texto. Voltemos à língua. Se a Catalunha se tornasse independente, o catalão seria a língua principal do novo Estado — disso não tenho dúvidas. Mas uma grande parte das famílias continuaria a falar espanhol em casa e na rua.
As tensões que iriam surgir — ou melhor, que iriam persistir, porque já lá estão, claramente — têm algumas parecenças com o que se passa na Ucrânia. De repente, a língua de prestígio do Estado (o espanhol em Espanha; o russo na União Soviética) passaria a ser a língua minoritária no novo Estado (o espanhol na Catalunha; o russo na Ucrânia). Em caso algum a Catalunha seria um país monolingue como é hoje Portugal — tal como a Ucrânia também não é.
Tanto num caso como no outro, os que imaginam uma sociedade monolingue em que há uma língua absolutamente predominante (como acontece, por exemplo, em Portugal) têm de se habituar a viver numa sociedade bilingue com o desconforto associado. Têm mesmo de se habituar à situação — não há muito a fazer e talvez até fosse bom aproveitar o que de bom tem o bilinguismo: todos os cidadãos podem aprender as duas línguas, o que não tem mal nenhum e permite aos ucranianos ler a boa literatura russa e aos futuros catalães independentes (se tal vier a acontecer) continuar a saber usar com mestria e talento a língua castelhana.
Já os espanhóis duma Espanha reduzida ficariam na pior situação de todas: saberiam espanhol e ponto final. Apesar de todas as tensões, saber duas línguas é sempre melhor do que saber só uma. O bilinguismo é desconfortável para o sentimento de identidade (que tende para o simplismo), mas faz bem à vida de cada pessoa bilingue em particular.
A que soa o português?
Uma vitória na Eurovisão não serve para nada — nem tinha de servir. A Eurovisão é uma maluqueira muito europeia. Com algum esforço, vislumbro uma vantagem daquela explosão de luzes e fogo de artifício: o festival andou anos a criar memórias comuns aos europeus, o que não é coisa pouca.
Quanto ao nosso vencedor, o que temos agora é uma música em português que de repente está nas rádios de vários países. Uma música que ajuda os ouvidos destreinados dessa Europa de tantos países a reconhecer bem a nossa língua.
Isto não é coisa para mudar o estado da música portuguesa — seja ele qual for. E ainda bem. Mas, como disse lá em cima, a ligação entre língua e identidade leva-nos a querer que os outros nos reconheçam. É também por isso que sabe bem a um português ver gente de tantos países a dizer: «Ora bem, ouvi esta música em português — levem lá doze pontinhos que a coisa soou-me bem.»
(Por outro lado, a vitória não deixou de ser um prazer muito tribal. Portugal ganhou e pronto. Se tivéssemos ganho com uma música em inglês, desde que a vitória fosse nossa, ninguém ficaria assim muito chateado.)
Ah, com esta mania das línguas ibéricas, acabei por não falar daquilo que pensei quando comecei a escrever: do hebraico, a língua ressuscitada — e do húngaro — e do bielorrusso — e das outras línguas que por lá ouvimos. Na verdade, foram poucas. Para um festival europeu, a coisa foi muito monolingue…
Não faz mal. Isto da Eurovisão é de modas. Nos anos 70, as canções soavam todas aos ABBA. Nos anos 90, a Irlanda era o farol da Eurovisão. Depois, veio a loucura dos primeiros anos deste século, em que valia tudo, menos cantar numa língua que não fosse o inglês. Portugal chegou sempre a estas modas com algum atraso e também por isso nunca ganhou nada. Desta vez, atravessou-se à frente e apresentou uma coisa diferente da moda dos últimos anos — e ganhou. É por isso que já muitos prevêem a moda do «vamos todos cantar músicas calmas na nossa própria língua». Será esse o mote da Eurovisão em 2018 — numa cidade perto de si…
O que significa que para o ano terei muito mais para falar sobre as línguas da Eurovisão do que este ano. Cá estaremos, pois então.
Artigo publicado em 2017 no blogue Certas Palavras.