Quando indica limite ou espaço ou quantidade, a palavra até é uma preposição. Exemplificando: «podemos caminhar até aqui»; «o espetáculo dura até amanhã»; «estamos a pensar ir até ao Gerês»; «o pavilhão alberga até 3000 pessoas».
Se existir uma ideia de inclusão – «puseram tudo em cima da mesa, até o computador» –, está-se perante um advérbio.
N. E. (4/10/2016) – Sobre a classificação de até no quadro na terminologia e no quadro de análise adotados no ensino não universitário, entendeu o consulente João de Brito enviar algumas observações críticas, que agradecemos e a seguir se transcrevem:
«Advérbios e preposições são classes tratadas muito superficialmente, ATÉ incorretamente, pelas gramáticas. Começando pelos termos e tolerando a sua natureza espacial, verificamos que, se o ADvérbio se adequa à relação com o verbo, já a PREposição é uma mentira, porque, de facto, ela é sempre, explícita ou implicitamente, uma INTERposição. Passando à resposta, é para nós claro que, nos exemplos dados, o ATÉ é sempre ADvérbio, porque, acima de tudo, modifica a significação do núcleo do predicado (verbo) da frase (oração) de que faz parte. Já seria preposição, se, em vez de “…estamos a pensar ir ATÉ ao Gerês…”, nós estivéssemos a pensar…ir de Braga ATÉ ao Gerês. Aqui, sim, já não modifica, em primeira mão, o núcleo do predicado (verbo), mas marca o percurso entre dois pontos. No primeiro caso, temos um destino; no segundo, temos um trajeto. Numa expressão matemática, seria assim: …ir + até ao Gerês… vs. …ir + (de Braga até ao Gerês)… 2.” Se existir uma ideia de inclusão – «puseram tudo em cima da mesa, até o computador» –, está-se perante um advérbio.” Parece estranho, ATÉ espírito de contradição, mas este advérbio significa exclusão e não inclusão. O computador é excluído do rol de tudo o resto. Há aqui uma subida de nível, uma surpresa, um cúmulo, o que implica que a expressão deixe de ser mera circunstância dentro da frase (oração) explícita e se constitua como frase (oração) autónoma implícita.»
Não obstante este comentário, cabe realçar que a Gramática do Português (GP) da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, págs. 1555 e 1671), classifica a forma até como preposição e como advérbio focalizador inclusivo, contextualizando de modo diferente os usos correspondentes e não parecendo afastar-se da classificação que decorre das terminologias atualmente em vigor em Portugal e no Brasil (respetivamente, o Dicionário Terminológico, de 2009, e a Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959); exemplos: «Estas duas preposições [desde e até] assinalam os limites de uma extensão, quer no domínio espacial quer no domínio temporal»; «Os advérbios focalizadores inclusivos (até, inclusivamente e também) marcam a pertença de entidades a um conjunto, mas, em vez de caracterizar esse conjunto subtraindo entidades não mencionadas e deixando ficar as que são mencionadas, adicionam as entidades mencionadas a outras, implícitas, que se pressupõe estarem também incluídas no conjunto». Nesta perspetiva, até é sempre preposição tanto na frase «estamos a pensar ir de Braga até ao Gerês» como em «estamos a pensar ir até ao Gerês», indo ao encontro, aliás, de um uso descrito pela GP (pág. 1555): «Num uso coloquial e informal, a preposição até pode também ter um valor espacial direcional, sem qualquer pressuposição de limite, semelhante ao da preposição a: [...] a. Vem até minha casa. b. Vou até ao café.» Até é um advérbio de inclusão em «puseram tudo em cima da mesa, até o computador», enunciado em que marca uma focalização, conforme propõe a GP (pág. 1671): «O advérbio até [...] [veicula] a ideia de que a inclusão, no conjunto mais vasto, da entidade, da ação,ou da propriedade mencionadas no foco constitui algo de inesperado ou surpreendente. Por exemplo, em [...] ["Até o Pedro beijou a Maria"], o advérbio veicula implicitamente que o falante não esperava que o Pedro beijasse a Maria. Este advérbio introduz, pois, um realce adicional relativamente a outros». Mas existem outras visões na linguística portuguesa: refira-se, por exemplo, num âmbito mais especilaizado, a proposta da linguista portuguesa M.ª Henriqueta Costa (1929-2004), que, numa perspetiva enunciativa, explorou a relação do uso adverbial de até com a negação e a concessão no artigo “Pour une définition de quelques faux adverbes à partir de la description d’opérations énonciatives sous-jacentes" in Tempo, Aspecto e Modalidade. Estudos de Linguística Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1997, págs. 123-134).
N. E. (11/11/2016) – Novo comentário do consulente João de Brito, que agradecemos:
«O que me move é a semântica, sem a qual, estou convencido, a gramática perde a alma e a coerência, tornando-se verdadeiramente caótica. Durante 40 anos de docência e de reflexão, fui concluindo que gramáticas assim, não só não organizam o pensamento dos alunos, como até os desorientam e desmobilizam, o que, no meu entender, mais que justifica que eu assuma como missão aquela motivação. Porque não aprecio polémicas, esta minha comunicação nem sequer reclama resposta. Apenas não resisto à tentação de, face ao comentário ao meu comentário, acrescentar algo que, já na altura, me veio à ideia, mas que, por economia, não fiz. "Num uso coloquial e informal, a preposição até pode também ter um valor espacial direcional, sem qualquer pressuposição de limite, semelhante ao da preposição a: [...] a. Vem até minha casa. b. Vou até ao café." Eis mais um bom exemplo da falta de rigor, o que não admira, porque os autores, que não relevam a dimensão semântica da língua, são as primeiras vítimas dessa lacuna. Vejamos: 1. Não sei por que as duas expressões devam ser consideradas coloquiais e informais. 2. Talvez só na matemática pura se possa conceber “um valor espacial direcional, sem qualquer pressuposição de limite…”. 3. “… semelhante ao da preposição a…” Pelo menos aparentemente, ignora-se a coexistência da dita (implícita, no primeiro caso). O que acontece é outra coisa: “Ir até ao café” significa, muitas vezes, mais uma opção ou um ato da vontade, uma rotina ou uma mudança de estado, do que uma direção espacial, o que implica, nesses casos, que o até integre uma expressão de valor adverbial e não preposicional. Assim manda o sentido das coisas. Se não tratarmos de maneira diferente o que é diferente, estaremos a reduzir a língua a uma qualquer coisa mecânica e monocórdica, quando ela é uma belíssima sinfonia. Nota: Não duvido, nunca duvidei, de que as vossas respostas respeitam as gramáticas. Mas são as gramáticas que eu contesto… Será pecado?!»
Entretanto, dois comentários:
– Como já tem sido observado noutras notas que dão conta dos reparos e comentários do consulente João de Brito, não nos parece que, nas fontes que consultamos, se descarte a semântica. Na nota de 4/10/2016 remete-se para os estudos de Maria Henriqueta da Costa Campos, os quais vão ao encontro da posição de João de Brito; e quem fala dessa investigadora poderá mencionar outros nomes. Existe, portanto, um conjunto de linhas de investigação preocupadas com a semântica e a interação discursiva, em alternativa às visões mais sintaticistas e lógico-matemáticas da língua. Essas propostas têm tido eco nos próprios ensino básico e secundário; com efeito, até (ou, se se preferir, inclusivamente) o próprio Dicionário Terminológico aceita o seu contributo, quando além de fixar termos para a identificação de valores semânticos (B.6 Semântica), apresenta uma secção integralmente dedicada ao discurso (C. Análise do discurso, retórica, pragmática e linguística textual). Não se pode é esperar – e quantas vezes isso ocorre – que tais perspetivas se prestem constantemente a exercícios escolares que pressupõem a simples identificação de noções teóricas e excluem a interpretação do discurso que qualquer frase genuína subentende.
– Quanto às gramáticas, é verdade que elas são aqui citadas, mas não se tire daí a ilação de que elas têm sempre a última palavra. É importante conhecê-las e divulgar aspetos da sua análise, sobretudo pela discussão que suscitam, a favor ou contra os critérios de classificações e as análises que propõem – sem sombra de pecado, acrescente-se.