Procurando conhecer a literatura brasileira do século XIX, aconteceu-me ler algumas páginas de A Carne, ao que parece, o mais importante romance de Júlio Ribeiro, (1845-1890). Nesta obra, que se distingue pelo seu realismo, lê-se a dada altura: «Ajoelhou-se. Abdome, estômago, diafragma, esôfago, contraíram-se em uma náusea violenta.» A frase, sensorialmente sugestiva, suscita igualmente alguma reação por nela ocorrerem duas palavras, abdome e esôfago. Será que, aos olhos do leitor atento, estas formas configuram erros ortográficos? A resposta é negativa.
No universo da língua portuguesa, é comum encontrarmos palavras que admitem variantes com registo ortográfico, sem que isto constitua um erro. Abdome e abdómen exemplificam perfeitamente essa flexibilidade. Vale referir que, conforme explica o dicionário Houaiss, a forma abdome ganhou popularidade no século XX como uma alternativa mais simples para a pluralização de abdômen (em Portugal, abdómen), que gera os plurais formais abdômenes e informais abdómens; observe-se, porém, que nos dicionários elaborados em Portugal se favorece abdómen (plural abdómenes). Quanto a esôfago, é grafia que indica a pronúncia do o fechado, diferente, portanto, do que é comum em Portugal, onde se escreve esófago, com o acento agudo a representar o timbre aberto da vogal o. Trata-se, portanto, de uma situação de dupla grafia que depende de usos normativos nacionais (ver "Esófago vs. esôfago").
São vários os casos em que, apesar de refletirem a riqueza e a adaptabilidade da língua portuguesa, desafiam a tendência de corrigir automaticamente a forma menos familiar. A título de exemplo, fale-se de: bêbedo e bêbado, do latim tardio bibìtus; síndroma e síndrome, do grego sundromê; cãibra e câimbra, com origem controversa, mas provavelmente do gótico *kramp; além de cociente e quociente, do latim *quotiente; degelar e desgelar, verbo formado por sufixação e prefixação (de-+gelo+-ar); catorze e quatorze, do latim quattuordecim; e assobiar, do latim adsibìlo ou assibilo, e assoviar, forma histórica: século XIV asouiar/asseviar/suviar, século XV assoviar.
Por outro lado, há exemplos que não levantam dúvidas, por nos serem mais familiares, mas que se enquadram na temática aqui tratada, nomeadamente os relacionados com a variação entre o ditongo ou (geralmente reduzido a um o fechado) e o ditongo oi: touro e toiro, do latim tauru-; louro e loiro, do latim lauru-; ouro e oiro, do latim auru-. Muitas formas com u podem ser consideradas mais eruditas, por estarem mais próximas das suas raízes latinas; no entanto, nem sempre é assim, como acontece com a variante popular noute, que parece posterior a noite, do latim nocte-, com o mesmo significado (ver "'Oi' ou 'ou'?")
Portanto, antes de se ceder ao impulso de corrigir uma palavra que nos parece estranha, vale a pena considerar a existência de variantes legitimadas por registo em vocabulários ortográficos, como sejam o de Rebelo Gonçalves ou, já atualizados, o que se encontram no Portal da Língua, na Infopédia ou no portal da Academia Brasileira de Letras. A visão normativa do idioma não é incompatível com a vasta gama de usos do português: sem prejuízo do sentido crítico e da necessidade de evitar a dispersão, é possível, mesmo assim, ter flexibilidade e abertura para abarcar a riqueza da diversidade da língua portuguesa dentro das suas regras.