«E, no topo de carreira, há sobretudo que gerir um grupo de 25 homens extraordinariamente bem pagos, todos eles convencidos de que são a última bolacha do pacote, com um séquito de ‘chegam’issos’ a tratar-lhes de todas as necessidades e outro de sicofantas a dizer-lhes em permanência que não há estrela que brilhe tanto como a deles, o que dificulta qualquer esforço de condução ao líder.»
António Tadeia, "Armadilhas de liderança", 09/04/2025
A linguagem do futebol tem tido grande atenção aqui no Ciberdúvidas, quer pela expressividade dos seus géneros e estilos, quer por ser área privilegiada do discurso para ativar léxico de tradição popular ou de transmissão erudita. Em Portugal, por exemplo, vai buscar com certeza muita da sua acutilância e até verrina a antigos mestres da polémica e do sarcasmo literário, como o imensamente homenageado Camilo Castelo Branco, cujo duplo centenário se celebra em 2025.
Desta vez, merecem registo duas palavras: "chega-m'isso", de cepa vernácula; e sicofanta, vocábulo já mais antigo, de uso erudito e esporádico.
A respeito de «chega-me-isso» ou "chegam'isso", nada impede a grafia aglutinada chegamisso, mais prática e preferível, seguindo o exemplo de aguardente («água ardente»). Quanto ao significado, lê-se, por exemplo, num mural de Facebook:
«Chegamisso. Este termo é usado para se referir a um aprendiz ajudante ou moço de recados dedicado, que está sempre disponível para ajudar e atender às necessidades do chefe. Embora seja muito útil, é importante não confundir o "Chegamisso" com o "Lambe-Botas", que se refere a alguém que bajula excessivamente.»
Como se observa acima, não sendo o mesmo que «lambe-botas», chegamisso parece encontrar um bom equivalente em «moço de recados», como facilmente se depreende em usos da atualidade política em Portugal:
(1) «Chega é o "chega-me isso" dos socialistas, diz Montenegro» (Jornal de Notícias, 07/05/2024).
Chegamisso é um composto morfossintático, formado, portanto, por outras palavras, com a originalidade de estas constituírem uma frase imperativa, configurando uma ordem, «chega-me isso!», ao que parece, entendida como «passa-se essa coisa» ou «faz-me esse serviço». E acrescente-se que não é inusitado uma frase passar a funcionar como uma palavra, dando origem a um composto morfossintático. Basta lembrar o caso de malmequer, que, ao que tudo indica, vem da frase «mal me quer», ou não-me-toques, no sentido de «melindre» ou «pessoa que se melindra facilmente» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – ACL).
Contudo, não se julgue que é recente o uso fixo desta expressão como nome. Na verdade, sob a forma chega-m'isso, significa «pessoa que manqueja de forma muito pronunciada» (cf. A. M. Pires Cabral, Língua Charra. Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2013). Não é possível aqui esclarecer cabalmente a relação de chegamisso, na aceção de «moço de recados», com chega-m'isso, «pessoa que manqueja». Será porque, em tempos idos, era moço de recados quem tinha algum tipo de problema motor?
Quanto a sicofanta, a ocorrência do que se lê na epígrafe suscita também breve comentário. Nos dicionários aqui consultados, sicofanta significa «acusador, caluniador, mentiroso» (cf. Dicionário Houaiss, dicionário da ACL e Infopédia) e, na sua família de palavras, conta com siconfatia, «mentira, fraude, delação», sicofântico, «relativo a sicofanta ou sicofantia», e sicofantismo, «qualidade ou atitude de sicofanta». Todas estas palavras são compostos em que se incluem os radicais de origem grega sic-, de sûkon, ou «figo; pequena excrescência na pálpebra ou no ânus; vulva», e -fant-, de phainein «mostrar» (ibidem).
No Corpus do Português, sicofanta tem seis ocorrências em textos de Garrett, Camilo, Machado de Assis e Mário de Carvalho, nas quais se deteta uma aceção igualmente depreciativa, mas com uma ligeira modulação semântica no mesmo campo lexical da mentira. Listam-se quatro abonações:
(1) «Se todos os chefes populares soubessem e ousassem reprimir assim os aduladores das más paixões, os sicofantas do povo – que os há nas praças como nos paços e onde quer que está o poder, estão eles – há muito que o despotismo não existia na Terra» (Almeida Garrett, O Arco de Sant'Ana, 1845-1850)
(2) As leis antigas, que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantas modernos que já não servem à humanidade, a qual, em consequência de ter mais sete séculos, se emancipou da tutela das leis» (Camilo Castelo Branco, A Queda de um Anjo, 1866).
(3) Cada partido tem os seus díscolos e sicofantas. (Machado de Assis, Quincas Borba, 1886-1891)
(4) «[...] o homem mostrava-se revestido de toga cândida, peça de vestuário que, em Tarcisis, nenhum dos duúnviros, que eu me lembrasse, tinha alguma vez usado, mesmo nas cerimónias mais faustosas. De que impulso emergira aquele propósito? Como se poderia alguém orgulhar de não saber grego e suscitar aplausos? [...] Episkopos? Supervisor? Mercador? Sicofanta? Era decerto o tal em que Airhan me havia falado.» (Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, 1994)
Entre os exemplos acima, salienta-se o primeiro, de Almeida Garrett, em que sicofanta é compatível com certo grau de sinonímia com adulador, sem obliterar o significado básico de «caluniador». Ora, na epígrafe deste comentário, sicofanta interpreta-se como «adulador», tal como acontece com cognatos da forma portuguesa, o inglês sycophant, sinónimo de flatterer, ou seja, «adulador».
Refira-se que a sicofanta se associa o que pode bem ser uma pseudoetimologia, ou seja, uma etimologia falsa. De acordo com o Dicionário Houaiss, considera-se que a palavra portuguesa (e cognatas doutras línguas) vem do grego sukophántēs, ou, «delator de contrabandistas de figos ou dos que roubavam os frutos das figueiras sagradas; caluniador», por via do latim sycophanta, ae, «o que acusa um ladrão de figos (em Atenas); velhaco, impostor, mentiroso; adulador, hipócrita». O próprio Dicionário Houaiss, na sua 1.ª edição (2001), inclui na definição da palavra a aceção etimológica, da Antiguidade, donde as da atualidade procedem por extensão semântica: «entre os antigos gregos, denunciante dos que exportavam figos por contrabando ou daqueles que roubavam figos de figueiras consagradas». Contudo, a mesma fonte assinala que Pierre Chantraine, no Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque, tem tal explicação por duvidosa.
E ficam por aqui estes comentários, no fundo, a revelar como os significados lexicais concorrem, coexistem e surgem muitas vezes por associações mentais imprevisíveis.