Depois de ter beneficiado de uma bolsa do Governo do Brasil para fazer o mestrado em Sociolinguística, Ezequiel Bernardo¹ concedeu ao Jornal de Angola esta entrevista em que explicita os seus pontos de vista sobre o ensino das línguas nacionais, sobretudo no meio rural, e o impacto que isso poderia ter no desenvolvimento das comunidades locais do seu país. Entrevista conduzida pelo jornalista Isaquiel Cori, com o título original «Interessa-me compreender como funciona a escola rural». Texto redigido segundo a norma ortográfica de 1945, oficial em Angola.
Qual é o tema da sua tese de doutoramento? O que o fez optar pelo Brasil?
Optei pelo Brasil por ser um país de expressão portuguesa e por ter muito a ver com o tipo de estudo que faço, que é uma perspectiva da Sociolinguística crítica, tendo em conta também a questão sociolinguística angolana. Já tinha feito o mestrado em sociolinguística no Brasil, financiado pelo Governo brasileiro, propriamente em políticas sociolinguísticas para o ensino bilingue em Angola.
Agora você é que está a custear o doutoramento. Não conseguiu apoios, uma bolsa de estudo?
Sim, tendo em conta a escassez de bolsas e de apoios institucionais no país, resolvi estudar por conta própria.
Isso significa um sacrifício enorme, pessoal e familiar, tendo em conta que a sua ocupação profissional é a docência...
É um sacrifício, pois tenho de contrair dívidas. Como tenho um propósito a cumprir, acabo por sacrificar a família, mas para um bem comum, um bem social, tendo em conta o contexto do ensino em Angola.
O tema da sua tese de doutoramento qual é, concretamente?
«Entre comprar cadernos e comer, o que é mais urgente? Cartografia sobre o monolinguismo e ensino e ideologias em contextos multilingues angolanos».
O que foi que o levou à escolha desse tema?
Primeiramente, sou um pesquisador que versa muito pela questão do ensino em contexto rural, que é uma área muito marginalizada em termos de pesquisa em Angola. Ao desenvolver o meu estudo de mestrado percebi algumas lacunas cujo estudo podia dar sequência no doutoramento. Resolvi seguir a perspectiva já levantada no estudo do mestrado, tendo em conta o abandono escolar massivo nas escolas rurais e a vivência que tem a ver com as políticas públicas para o contexto rural. Por isso a minha ocupação era e é compreender como é que a escola rural funciona e como é que nós poderíamos facilitar ou então adequar o ensino nas escolas rurais tendo em conta o cenário contextual, ou seja, tendo em conta o termos um cenário mais contextual e não a norma estabelecida por Luanda. Temos de romper o paradigma da homogeneização. Temos uma escola homogénea e precisamos compreender que o contexto rural tem as suas especificidades.
Quando fala em escola homogénea significa que há um padrão de ensino único que é imposto a todo o território independentemente da diversidade linguística e outras?
Sim. Há um padrão que deve ser seguido pelo país todo. E nós percebemos que não é possível olharmos dessa maneira para as escolas rurais, que apresentam especificidades. Por não se ter em atenção essas especificidades temos o problema com que nos deparamos hoje, que é o do abandono massivo da escola em contexto rural.
Quais são, concretamente, as especificidades a que se refere?
Nas áreas rurais, existe um período de preparação dos solos, um de plantação e outro de colheita. Nesses períodos os alunos ausentam-se da escola. Se se ausentam da escola para poderem ajudar os pais na subsistência da família, não é possível que as políticas educativas continuem homogéneas. É preciso que as políticas educativas sejam contextuais, de modo a responderem a essas realidades. Deve haver calendários lectivos específicos para esses contextos. Quer dizer que há um problema nas políticas educativas públicas, que não responde às necessidades do país. Nós observamos que quando chega a época de recolha de frutos silvestres os alunos abandonam a escola. Não podemos continuar nesse tipo de cenário. Se se criasse um mecanismo no sentido dos alunos nesses contextos rurais não irem à escola, haveria uma pausa escolar porque estarão engajados nesse tipo de actividade, que é de subsistência. Aí sim, os alunos iriam à escola. Não adianta impormos um calendário escolar e os alunos não estarem na escola. Assim não estaremos a promover o ensino nesse contexto.
São recorrentes as notícias do abandono escolar nas comunidades pastoris, em que as crianças têm de fazer o pastoreio do gado, às vezes em situação de transumância. Aí a lógica do abandono escolar é a mesma?
Como nós não compreendemos esse cenário, às vezes saímos a fazer determinados julgamentos que nem sequer se adequam ao contexto, porque o desconhecemos. Esse é um dos locais em que podemos compreender que o que se põe aí não é só a vontade deles abandonarem a escola. Primeiro é que os pais e os filhos falam uma língua que a escola não ensina, os alunos falam as línguas nacionais e a escola vem impor-lhes a língua portuguesa, o que dificulta a participação dos pais no processo de aprendizagem dos filhos. Os filhos não falam português e se falam não é o português que a escola legitima. Cria-se um conflito muito grande, que faz as crianças desinteressarem-se pela escola. Há aqui uma situação que os nossos decisores das políticas educativas, a começar pelo Ministério da Educação, precisam de ter em atenção. E por outro lado percebemos que as escolas rurais nem sequer estão mapeadas pelo Ministério da Educação. Não existe um mapeamento das escolas rurais existentes em Angola.
O Ministério da Educação desconhece as escolas rurais?
Não existe um mapeamento de quantas escolas rurais existem e de como é que essas escolas funcionam e qual é o projecto do Estado para que essas escolas se mantenham. Por exemplo, estive no Bié em 2022, no primeiro trimestre e depois voltei no terceiro trimestre. No primeiro trimestre encontrei alunos mas no terceiro trimestre encontrei a escola fechada.
Porquê?
Os alunos abandonaram a escola porque era a época da plantação. A escola fechou totalmente. Os professores faltavam, ninguém prestava contas a ninguém.
Os professores não eram residentes na comunidade?
Não, o que também é um perigo. Daí surge a necessidade do MED olhar com atenção para os professores que dão aulas no contexto rural. Ou precisa criar condições para que os professores residam nessas comunidades ou o Estado precisa criar políticas que permitam dar alguma verba adicional para que esses professores consigam se deslocar com frequência à área onde estão colocados. O que foi que eu fiz? Reuni com a comunidade para perceber o motivo que estava por trás daquilo. (Isso aconteceu na localidade de Ngunda, município do Cuito). E consegui perceber que, primeiramente, havia o desagrado pelas políticas educativas e a forma como se leccionava. Temos um plano curricular que não agrada à comunidade, temos disciplinas que não servem para aquilo que ela pretende. Por exemplo, é preciso ter uma disciplina de plantação, uma disciplina ligada à colheita dos alimentos... Essas disciplinas têm mais a ver com aquilo que a população faz e precisa. A escola não proporciona isso. A escola proporciona um modelo curricular que extrapola os objectivos da comunidade. Logo, a comunidade não vai permanecer na escola.
«O ensino nas áreas rurais
precisa de ser feito nas línguas nacionais»
Há uma questão que você defende muito nos seus textos, que é a questão do ensino das línguas nacionais. A questão que se coloca é se o ensino todo deve ser feito nas línguas nacionais ou se as línguas nacionais devem constituir disciplinas específicas?
Tenho debatido sempre essa questão porque julgo que as ideias que se constroem em torno do ensino bilingue em Angola são falsas.
O que é o ensino bilingue?
O ensino das línguas nacionais não torna o ensino bilingue. Não é possível chamar ao ensino «bilingue» quando eu coloco a língua nacional como disciplina. Isso não vai resolver o problema que temos.
No contexto urbano também não faz sentido que uma determinada língua nacional entre no ensino como disciplina específica?
Para começar pode fazer sentido somente no contexto urbano. Por exemplo, você vive numa área rural, pensa numa língua nacional e está a ser obrigado a desenvolver um texto em língua portuguesa. Que resultado é que terás no texto em língua portuguesa? Zero, porque estás a pensar numa língua e a esforçares-te a traduzir numa outra língua que nem sequer dominas. Por exemplo, a questão da matemática. Em [quimbundo] dizemos «dikuinhi jiadi» e em português «vinte». Só a forma de contagem dos números já extrapola o princípio normativo daquilo que é a língua nacional e daquilo que é a língua portuguesa. Estamos aí dentro de um conflito muito grande e é preciso nós aceitarmos que o ensino para as realidades rurais precisa de ser feito nas línguas nacionais. Não é que deva haver uma disciplina em línguas nacionais, o ensino deve ser feito nas línguas nacionais. Ensinar matemática, história, biologia, geografia e outras disciplinas nas línguas nacionais. Isso de modo contextual. Onde se fala [umbundo] ensina-se nessa língua, onde se fala [quimbundo] ou cokwe idem e assim por diante.
Compreende que esse tipo de ensino tornaria muito mais complexo o recrutamento e a formação dos professores?
Esse é um falso problema. Os ISCED formam professores e nessa formação devia haver uma componente ligada a isso. É um problema que precisa de ser reajustado. Infelizmente os ISCED só formam professores para a área urbana. Tirando as línguas nacionais que são dadas em alguns ISCED e na Faculdade de Humanidades, estamos diante de um problema muito sério. Por exemplo, no ensino de matemática, história ou de língua portuguesa, estão a ser formados professores sem uma componente que lhes permita responder às necessidades do ensino nas áreas rurais. Desenvolvi um estudo em Cabinda, no qual perguntei a alguns estudantes do ISCED, que já são professores, como é que lidam com essas situações em sala de aula. Eles não falam a língua ibinda. Disseram-me que têm tido dificuldades até de interagir com os alunos, «porque eles apresentam dúvidas que nós, às vezes, não conseguimos responder». Um ainda me disse «olhei para um aluno e vi que ele estava aflito. Perguntei-lhe o que se passava, em português, e ele ficou seriamente a olhar para mim e depois disse «unkóia»›. O aluno estava dizer que a cabeça lhe estava doer, mas o professor não compreendeu o que o aluno estava a dizer, até que um outro aluno informou ao professor o que o colega estava a dizer». Quer dizer, estamos diante de uma situação que precisa da nossa atenção como educadores.
Todas essas questões, aparentemente específicas do ensino em contexto rural, acabam depois por impactar na questão do desenvolvimento rural, da agricultura e da diversificação da economia?
É claro que não se alcança o desenvolvimento quando estamos a negar a língua da comunidade. O subdesenvolvimento da área rural ocorre ou piora porque queremos transformar a área rural em área urbana. Precisamos de dar às comunidades rurais as ferramentas para que elas desenvolvam o que sabem fazer lá onde vivem. Aí assim, estaríamos a criar as premissas para o desenvolvimento do país. Enquanto pensarmos em, primeiro, impor-lhes uma língua, que é a língua portuguesa para depois exigir-lhes outra coisa, estaremos a regredir. É preciso haver a criação de políticas de apoio às comunidades rurais, de maneira que ao desenvolverem a agricultura de subsistência consigam desenvolver também o espaço onde vivem.
A Lei de Bases do Sistema Nacional de Educação, na sua opinião, não acomoda devidamente a questão das línguas nacionais no ensino?
A Lei de Bases do Sistema Nacional de Educação ou o estatuto das línguas nacionais? Há um estatuto, que se pressupõe haver, das línguas nacionais e existe a Lei de Bases da Educação que também acaba por não ter em atenção o contexto rural, deslegitima e marginaliza o contexto rural.
Tudo isso como?
Quando temos na Lei de Bases elementos que não reforçam a diversidade linguística, significa dizer que estamos a assumir que o país é monolingue. Por exemplo, quando dizes que «as línguas nacionais poderão ser ensinadas, mas por intermédio de um outro decreto/lei», que nem sequer existe, estamos indirectamente a dizer que não se pode ensinar as línguas nacionais. Este é um grande problema porque é a partir da lei que deveríamos ter bases para que os professores usassem a línguas nacionais. Ao fazer uma pesquisa de campo, deparei-me com professores a falarem em [umbundo] na sala de aula, mas ao me verem calaram-se, com receio que eu levasse a informação ao Ministério da Educação de que falavam em [umbundo] para esclarecer as dúvidas dos alunos. A questão é que se aí, naquele contexto, você como professor não esclarecer a dúvida do aluno na língua nacional, ele dificilmente permanece na escola, porque ele está insatisfeito. É preciso que a nossa lei seja inclusiva, que não exclua ou marginalize outros grupos sociais, para termos um país mais coeso, equitativo e bom para viver.
«O português angolano
precisa de ser normatizado»
Em relação ao estatuto das línguas nacionais, o que há lá que não se adequa àquilo que poderia permitir um maior desenvolvimento e inserção das línguas nacionais no ensino e na vida pública?
O estatuto das línguas nacionais como tal não existe.
Não existe?
Não está escrito.
É só um nome. Se está escrito ninguém o aprovou. Então não existe. Só podemos falar de um estatuto quando ele já está aprovado e posto em circulação. O estatuto das línguas nacionais é um documento que foi remetido à Assembleia Nacional desde a década de 80 e nunca de lá saiu.
A Constituição do país reconhece a importância das línguas nacionais...
Não basta reconhecer. Além de reconhecer é preciso dizer onde as nossas línguas vão ser utilizadas. O estatuto é que viria dar esse peso, esse valor às línguas nacionais. Por exemplo, o meu filho vai aprender [quimbundo], mas vai utilizar essa língua onde? Quando fiz um estudo sobre os hospitais, encontrei uma paciente que só falava [quimbundo] e mandaram-lhe voltar pra casa, disseram-lhe ‹‹vai buscar o teu neto para vir aqui nos esclarecer o que você está a sentir››. Isso foi em Malanje. E a tradução do neto poderia nem sequer reflectir o que a velha de facto sentia. Estamos diante de uma situação que precisa de ser revista. É preciso aceitarmos que Angola é um país de diversidade linguística e em que o estatuto das línguas nacionais é fundamental. Precisamos de perceber que não podemos dar um tiro no escuro. Por exemplo, temos agora a Constituição em várias línguas nacionais e perguntei a alguém, com responsabilidades políticas, onde vai ser utilizada essa Constituição em línguas nacionais? Em lugar algum, porque as línguas nacionais nunca foram utilizadas nos espaços públicos oficialmente. Nos tribunais não são utilizadas, nem nas escolas... Precisaríamos primeiro de ter o estatuto das línguas nacionais e depois a Constituição traduzida nessas línguas. Aí os tribunais já poderiam utilizar a Constituição nessas línguas quando houvesse necessidade e o país iria andando. E não fazer o contrário.
Há uma realidade a que não se pode fugir. Com ou sem estatuto oficial, as línguas nacionais têm uma enorme influência sobre o português em Angola, de tal modo que já tornam esse português bastante peculiar, diferente, e que talvez já demande uma gramática com regras próprias. Haverá já necessidade de normatização e legitimação desse português? Como é que você vê essa questão?
Angola tem um português angolano, sempre defendo isso. Nós não falamos português de Portugal ou do Brasil, falamos o português angolano. E existem muitos elementos, tenho pensado muito nisso, que já nos levam a pensar na questão da normatização do português angolano. Vários pesquisadores já desenvolveram estudos, quer a nível morfológico, quer a nível fonético, quer a nível fonológico. É preciso que o Estado olhe para isto de modo benéfico. Quando olharmos para a necessidade da criação da norma do português angolano como algo benéfico para o país, vamos nos preocupar em criar projectos, que envolvam outros pesquisadores, e a partir daí começarmos a construir a norma do português angolano.
Isso seria benéfico para o país em que sentido?
Se formos às escolas, veremos que a disciplina que os alunos dizem que menos gostam é a língua portuguesa. E nós ainda não paramos para tentar compreender o porquê disso.
É opinião comum que se deverá à falta de hábitos de leitura...
Paremos. Eu também tenho esse problema, o português europeu para mim também é difícil. E não é que eu não tenha hábito de leitura. Há aí uma situação que precisamos de compreender. Nós falamos tendo em conta a influência das línguas nacionais. A construção do raciocínio é feita com marcas das línguas nacionais, estas estão sempre na nossa organização discursiva. É normal que entre nós se diga «me dá». Mas se estiveres numa prova e puseres «me dá» é um problema sério, é considerado errado, terias de meter ‹‹dá-me››. Estamos diante de uma realidade que conflitua muito com aquilo que a gente é, sobretudo quando o professor não consegue fazer ver ao aluno o que é a forma canónica, que se usa nos documentos e etc... No dia-a-dia a maioria das pessoas diz «me dá». Como dizia, precisamos de aproveitar o que temos de bom para podermos normatizar o nosso português. E hoje estamos a ser muito influenciados, sobretudo pelo Brasil. E acabamos por ir adoptando marcas do português brasileiro.
E aqui vamos entrar na questão do Acordo Ortográfico que Angola não adopta mas que entretanto entranha em nós seja pela linguagem reinante nas novas tecnologias de informação e comunicação, seja pela hegemonia editorial de Portugal e do Brasil. Como é que se resolve isso?
Primeiro, o Acordo Ortográfico apresentava algumas debilidades para o nosso contexto. Era preciso que se adequasse essas debilidades, uma delas era que se devia incluir o «Y» no alfabeto ². A resistência de Angola à adesão ao Acordo Ortográfico também tem implicações negativas porque nós somos dependentes de Portugal e do Brasil, que são os países que nos fornecem livros. Ora, se somos tão dependentes, é preciso arranjar um meio termo para sairmos dessa situação quanto mais cedo. Nas escolas os professores já não sabem se estão a usar a norma portuguesa ou brasileira.
(Abriria um parênteses para dizer que essa confusão também já se nota nos jornais). Mas não é só a dependência editorial de Portugal e do Brasil. Você vai ao Google ou aos correctores automáticos dos programas de edição de textos e a norma prevalecente aí é a do português segundo o novo Acordo Ortográfico...
Pois. O que é que Angola está a pensar fazer diante disso? Não se ouve falar disso. Estamos descansados e as situações vão se alastrando.
No fundo, o novo Acordo Ortográfico está oficiosamente em vigor entre nós?
Implicitamente está em vigor em Angola. Precisamos é de criar um mecanismo para tentar amenizar o conflito e compreender os benefícios e os problemas que podem resultar da adesão ou não ao novo Acordo Ortográfico.
O interesse pelo [quimbundo]
no Brasil
Quais são os seus planos para assim que terminar o doutoramento? Vai apostar mais na pesquisa ou na docência?
Desde sempre dei aulas, mas também voltado para a investigação. O meu ambiente de investigação é a área rural porque sinto que a área urbana já está «repleta» de pesquisas. É preciso compreender os fenómenos que ocorrem nas nossas áreas rurais. Gostaria, primeiramente, de fazer parte de uma comissão de mapeamento das escolas rurais e compreender quais sãos os problemas que as escolas rurais atravessam em Angola para podermos encontrar mecanismos que visem acabar com o abandono escolar e proporcionar um currículo específico para cada região.
Ainda relativamente ao ambiente escolar rural. Pelo que disse no início desta conversa, a escola actual não promove, ou não legitima, a língua das comunidades, menoriza-a ou ignora-a, impondo-lhes uma outra língua...
Esse é um grande problema. Precisamos de compreender que as escolas para as áreas rurais precisam de ser contextuais. Se não compreendermos como é que funciona a comunidade, não adianta sequer colocar lá uma escola. E é o que acontece. Vi o caso de uma escola bem construída, com carteiras e tudo mas que os alunos deixaram de lá ir. Mas na outra escola com paredes de barro os alunos permaneceram até terminar o ano lectivo. Às vezes nós construímos uma escola sem compreender primeiro a população que lá está, como é que funciona, quais são as tarefas que ela faz, os meses em que está mais ocupada e daí criarmos uma política de inserção do ensino. Se não tivermos em atenção esses elementos será um projecto frustrado, teremos mais uma escola abandonada.
Na sua formação no Brasil, tanto no mestrado como agora no doutoramento, tem dado aulas de [quimbundo]. Como é que surgiu essa ideia?
Tendo em conta a influência da língua [quimbundo] na formação do português brasileiro e o interesse de muitos brasileiros pela língua kimbundu, surgiu a necessidade de formular um projecto, isso em 2017, que deu abertura ao primeiro curso de [quimbundo] na Universidade Federal de Santa Catarina. Dei o curso três vezes. E também já dei três vezes na Universidade Federal de Catalão.
O curso tem a duração de quanto tempo?
Em 2017 teve duração de um semestre. Agora, mais recentemente, o curso é mais intensivo e com duração de um mês. São aulas extra-curriculares, pois somente os interessados é que fazem o curso. A intenção é dar o básico: saudações, como é que se escreve em kimbundu, a norma alfabética, como é que se diz o tempo...
De onde parte o interesse dos brasileiros por aprenderem o [quimbundo]?
Primeiro é que eles dizem que são africanos. Esse princípio de auto-aceitação como africanos já os motiva. E muitos participantes desse curso são pessoas que estudam sociologia, linguística. E como houve, no tempo da escravidão, a deslocação de muitos africanos para o Brasil, muitos querem compreender melhor a questão das línguas africanas. Por exemplo, extractos da língua [quimbundo] são usados no candomblé, nas igrejas de matriz africana no Brasil. Isso leva muitos a interessarem-se pelo curso de [quimbundo].
¹ Ezequiel Pedro José Bernardo, nasceu em 1981 em Luanda. Professor do ISCED/Cabinda, é licenciado em Língua e Literaturas em Língua Portuguesa pela Faculdade de Letras, actualmente de Humanidades, da Universidade Agostinho Neto e mestre em Sociolinguística e Dialectologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Actualmente faz o doutoramento em Sociolinguística na Universidade Federal de Catalão, Brasil.Autor do Livro «Na Terra de Quem», poesia, (2006), exibiu a exposição fotográfica «O choro da Flora» (2007) e participou na exposição fotográfica denominada «Africanidade», realizada no Brasil, estado do Rio de Janeiro, na qual expôs fotografias sobre o alembamento entre o povo Mukongo. Tem publicado artigos em jornais e revistas nacionais e internacionais.
² N.E. — As letras “K”, “W” e “Y” passaram a constar no alfabeto da língua portuguesa, a partir de 1 de janeiro de 2009, com a entrada em vigor do Acordo Ortográfico. Cf. aqui e aqui.
Cf. Kwadi: uma língua perdida de Angola com uma história para contar
in Jornal de Angola do dia 20/08/2023. Entrevista conduzida pelo jornalista Isaquiel Cori, com o título original "Interessa-me compreender como funciona a escola rural". Texto redigido segundo a norma ortográfica de 1945, oficial em Angola.