Nesta crónica na sua coluna Professor Ferrão, do jornal angolano Nova Gazeta, Edno Pimentel debruça-se sobre o uso em Angola do termo "mbora", usado para dar ênfase numa frase com o sentido de mesmo ou ao invés de.
Não era a primeira vez que ele, o meu amigo da Tuga[1], ouvira falar dela. É mais uma daquelas… coisas que algumas pessoas não querem por perto nem de longe, e sem compreender o seu valor, usam-na distraidamente. Às vezes, quando só se querem divertir, chamam-na e pronto.
Esse comportamento das pessoas chamou a atenção do meu kamba que queria pelo menos saber de quem se tratava. «Ela é mesmo angolana?», perguntava-me. E eu, sem saber o que responder, e porque não queria ser visto como vizinho zongola, dizia-lhe apenas que não sabia muito dela, mas estava quase certo de que era de Angola.
Por acaso já a vi com muita gente, inclusive gente famosa. Matias Damásio que me desculpe, já a usou, Eddy Tussa, Yuri da Cunha e tantos outros. A lista é infinita. «Não acredito», admirava o meu kamba.
Eh! O Eddy Tussa, por exemplo, que é mais descarado, não se importa com o que as pessoas vão falar dele. Ele gaba-se que «nós somos "mbora" mesmo assim». Damásio é outro, nostálgico e saudosista, lembra-se até do tempo do "kwanza burro", que hoje já não serve para o pedido, porque na carta «agora é "mbora" dólar».
A minha vizinha do andar de cima ainda ontem, quando a polícia fazia busca de alguns jovens fora da lei, também a usou: «O meu filho estava "mbora" a dormir.»
O meu kamba queria familiarizar-se com as coisas por cá, mas como não compreendia o valor que as pessoas lhe davam, ficava meio retraído. «Quero usá-la também, mas não sei por onde começar», desabafa comigo.
Obviamente ele não precisa dela, até porque os angolanos que a usam fazem-no apenas quando querem dar ênfase, conferindo-lhe o sentido de mesmo, e noutros casos ganha o valor de «ao invés de».
No caso da minha vizinha, quando usou "mbora", pretendia confirmar e enfatizar aos agentes da polícia que o filho dela estava mesmo a dormir, ou então que, ao invés de estar na rua, o filho estava a dormir.
Quando Matias a usou, pretendia dizer que, nos nossos dias, ao invés do kwanza, usamos dólar nas cartas de pedido. Já Eddy Tussa quis enfatizar que nós somos diferentes dos brasileiros e dos portugueses. «Nós somos mbora mesmo assim».
«Posso levá-la para Portugal. É que eu a achei muito interessante. Ou vocês vão sentir falta dela?»
Seria boa ideia. Já imaginaram vocês – "mbora" em Portugal ou no Brasil? Mas não. É melhor deixá-la (mbora) aqui. Ela tem uns amigos que não vão querer ficar. «Quais?» Ela gosta muito do "kilapi", "cassumbular", dos "mambos", da "esquebra" e um "kamba" que ela não deixaria por nada nem por ninguém – o "kumbu". Deixa-a por cá. Com a crise e as medidas de austeridade, ninguém terá cabeça para lhe prestar atenção. Deixa "mbora" em Angola. Aqui alguns ainda lhe dão valor.
[1] N. E. - A expressão «a Tuga» é usada em Angola, na gíria luandense, em referência a Portugal. Popularmente, diz-se «vim da Tuga» ou «fui à Tuga» (informação de José Mário Costa); e, fazendo uma pesquisa Google, por exemplo, em comentários de jornais eletrónicos, blogues ou páginas de discussão, é possível identificar ocorrências como «vive na Tuga», ou seja, «vive em Portugal». Também como substantivo comum, tuga é sinónimo de português neste e noutros países africanos onde se fala o português, e até mesmo entre portugueses. Vocábulo do registo informal, que atualmente pode ter conotações entre jocosas e depreciativas, é considerado, do ponto de vista linguístico interno, uma redução de portuga (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa), brasileirismo do registo informal e de cunho pejorativo (Dicionário Houaiss), ou do próprio nome do país: (Por)tuga(l) (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, na Infopédia). Na perspetiva da história e da dialetologia da língua portuguesa, todas as fontes consultadas o classificam como regionalismo da Guiné-Bissau, ao qual, no Dicionário Houaiss e no dicionário da Porto Editora, são atribuídas três aceções: «soldado português» (provável alusão à chamada Guerra do Ultramar, entre 1961 e 1974); «qualquer indivíduo português»; «qualquer indivíduo de raça branca».
Outros textos de Edno Pimentel sobre o português em Angola
Cf. Kwadi: uma língua perdida de Angola com uma história para contar
In jornal Nova Gazeta, de Luanda, publicado em 12 de setembro de 2013 na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.