« (...) Apesar de todos esses exemplos, as gramáticas dessas línguas seguem firmes e fortes, sem nenhum questionamento por parte de linguistas “progressistas” que, rebaixando a norma ao padrão coloquial, promovem não o progresso e sim um retrocesso em termos de cultura e civilização. (...)»
Há um debate candente nos dias atuais entre certos linguistas “progressistas” e os gramáticos em torno da chamada norma-padrão do idioma, aquela que deve ser usada em textos formais, como documentos, relatórios, livros, teses, trabalhos escolares, etc. Esses linguistas defendem a ideia de que a norma culta brasileira já se afastou muito da lusitana, devendo, por isso, a gramática normativa do português brasileiro incorporar usos já correntes nessa norma culta, visto que, supostamente, o modo como a gramática recomenda que se redija está muito distante do modo como os brasileiros cultos falam.
Primeiramente, para estabelecer como os brasileiros cultos falam, esses linguistas se baseiam nos dados do – Norma Urbana Culta, um projeto de pesquisa iniciado em 1970 que coletou amostras da fala de moradores de cinco capitais brasileiras considerados cultos segundo dois únicos critérios: posse de diploma de nível superior e vivência urbana. Já de saída esses critérios são bem questionáveis, visto que, especialmente no Brasil, em que 38% dos nossos universitários são analfabetos funcionais, ter diploma de nível superior não é atestado de cultura. Em segundo lugar, a tal vivência urbana foi aferida em apenas cinco capitais, as únicas à época que tinham mais de um século de fundação e um certo número mínimo de habitantes. Além disso, um projeto que perdura há mais de 50 anos engloba dados tanto do presente quanto do passado. Será que os hábitos dos falantes não mudaram nada em cinco décadas?
De todo modo, o que esse projeto examina e descreve é a "fala" das pessoas ditas cultas, não sua escrita. E todos nós sabemos que mesmo as pessoas mais eruditas não falam como escrevem, assim como não falam num bate-papo entre amigos como falam numa conferência ou aula magna. No entanto, os supramencionados linguistas sustentam que a norma urbana culta do português brasileiro falado, inclusive o informal, deve ser a norma-padrão do português brasileiro escrito formal.
Modéstia à parte, eu me considero uma pessoa culta, não porque tenho diploma universitário ou porque seja nascido e criado numa metrópole, mas porque sobretudo leio muito desde a infância e especialmente textos de boa qualidade, como ensaios filosóficos, livros de divulgação científica de boas editoras, biografias, crônicas de grandes jornalistas, romances, contos e poemas dos nossos melhores autores, além de, por dever de ofício, ler muitas publicações acadêmicas, dissertações e teses. Por consequência, acho que escrevo bem (vocês, leitores, é que podem julgar melhor), seguindo a norma-padrão em textos formais, como os artigos científicos que redijo, mas permitindo-me alguma flexibilidade em relação a essa norma em textos semiformais, como certas crônicas que publico no meu [blogue] dirigidas a um público mais jovem e não acadêmico.
Ao mesmo tempo, quando estou em casa ou entre amigos, ou mesmo sendo atendido no supermercado por um balconista de pouca instrução, eu me permito dizer coisas como «vamo se encontrá amanhã?», «eu vô vê ele hoje à noite» ou «me dá duzentas grama de salame». E não há nada de errado nisso: o mestre Evanildo Bechara já disse que precisamos ser poliglotas em nossa própria língua. E que cada contexto discursivo e cada situação comunicacional exigem um registro diferente, com sua gramática própria. Diferenças entre a língua escrita formal e a falada informal existem em todos os idiomas, mas em nenhum deles, que eu saiba, linguistas “progressistas” advogam que construções sintáticas típicas da fala descontraída sejam elevadas à categoria de linguagem exemplar.
Por exemplo, os falantes do inglês usam o tempo todo contrações de verbos auxiliares com o advérbio negativo not: don’t, doesn’t, won’t, can’t, haven’t, etc. No entanto, ao escrever textos formais, eles jamais contraem verbo e negação, pois é isso o que recomenda a gramática normativa da língua de Shakespeare. Temos então «do not», «does not», «will not», e assim por diante.
Contrações de verbo e pronome pessoal também são comuníssimas na fala, mas raríssimas na escrita formal. Assim, coisas como I’m, you’re, he’s, John’s, I’ve’, I’d, let’s, etc., tornam-se «I am», «you are», «he is/has», «John is/has», «I have», «I would/had» e «let us» na escrita.
O inglês falado, sobretudo o das classes mais baixas, é repleto de contrações informais como gonna por «going to», wanna por «want to», gimme por «give me, ain’t por «am not», «are not», «is not», «have not» e «has not». Além disso, usa muito «have got» e sua contração «’ve got» no lugar de have: «I’ve got» ou simplesmente «I got» por «I have».
Até em letras de canções encontra-se «he/she don’t» em lugar de «he’/’she doesn’t»; isso equivale ao nosso «nós vai». E, ainda, os anglofalantes por vezes suprimem o verbo auxiliar – «What you want?» por «What do you want?» – e até o sujeito: «Want a cigarette?» por «Do you want a cigarette?».
Finalmente, trocam o pronome reto pelo oblíquo e vice-versa, dizendo «for you and I» em vez de «for you and me», «para mim e você», ou «you and me are» em vez de «you and I are», «você e eu somos».
Mas, para não ficar só no inglês, o francês falado diz «chais pas» no lugar de «je sais pas», que já é um encurtamento coloquial de «je ne sais pas», «eu não sei». Também usa o pronome indefinido on, equivalente ao nosso «a gente» no lugar de nous, nós: «on va au cinéma» por «nous allons au cinéma», «nós vamos ao cinema». E omite «Est-ce» que nas interrogações: «Tu vas au cinéma ?» em vez de «Est-ce que tu vas au cinéma?».
O italiano usa os pronomes oblíquos tônicos de 3.ª pessoa lui e loro pelos retos egli, ele, e essi/esse, eles/elas, e ainda dizem «io e te» por «io e tu» ou «me e te», «eu e você». O espanhol platino emprega «vos hablás/hacés» por «vosotros habláis/hacéis» e os imperativos hablá, hacé por hablad, haced, assim como mistura vos e tú do mesmo modo como misturamos tu e você, por exemplo, em calmate, algo como acalme-te.
Por fim, o alemão falado omite o sujeito, o que é proibido pela gramática normativa: «bin hungrig», «estou com fome» em lugar de «ich bin hungrig», «eu estou com fome».
Apesar de todos esses exemplos, as gramáticas dessas línguas seguem firmes e fortes, sem nenhum questionamento por parte de linguistas “progressistas” que, rebaixando a norma ao padrão coloquial, promovem não o progresso e sim um retrocesso em termos de cultura e civilização.
Texto da autoria do linguista brasileiro Aldo Bizzocchi, no mural de Facebook Língua e Tradição no dia 14 de julho de 2024.