«Tais construções são frutos da criatividade sintática do uso real da língua, em que a braquilogia/contaminação atua como engrenagem de economia, fluidez e sentido.»
– Comprei um livro para mim estudar.
– Não entendi o porquê ele faltou à aula.
Certamente você já ouviu ou leu frases semelhantes a essas, certo?
Não pretendo aqui dizer se essas construções fazem ou não parte da norma culta escrita – afinal, sabemos que não. Ponto.
Meu interesse aqui é tentar dar uma explicação sintática para esses fenômenos linguísticos ainda próprios da norma popular, da linguagem coloquial, sobretudo de pessoas com baixo grau de letramento – algumas até com diploma.
Enfim, vamos à possível explicação: braquilogia.
A braquilogia (ou cruzamento sintático) é o encurtamento sintático que ocorre quando duas construções diferentes se cruzam (este é o ponto!) e se fundem numa só, gerando uma forma mais econômica e direta – sem comprometer a inteligibilidade. O falante diz mais com menos.
Isso aparece com frequência em estruturas como:
1- Comprei um livro para mim estudar.
Resultado do cruzamento de:
(a) Comprei um livro para mim. + (b) Comprei um livro para eu estudar.
Outro exemplo:
2- Entrei e saí da sala.
Resultado do cruzamento de:
(a) Entrei na sala. + (b) Saí da sala.
Mais um exemplo:
3- Fiz com que Pedro voltasse (este exemplo retirei da gramática de Bechara).
Resultado do cruzamento de:
(a) Fiz com Pedro que voltasse. + (b) Fiz que Pedro voltasse.
A braquilogia do exemplo 1 não faz parte da norma culta; já a dos exemplos 2 e 3, sim.
Esse tipo de cruzamento sintático tem lógica interna e revela a habilidade de o falante sintetizar estruturas para, em tese, poder comunicar até duas coisas ao mesmo tempo.
A estrutura «para mim estudar», por exemplo, comunica tanto a ideia de destino («para mim») quanto de ação («eu fazer»), mesmo que vá contra a norma culta.
Agora, sim, veja o paralelo com a frase «Não entendi o porquê ele faltou à aula», que está sendo usada direto na boca do povo e até na escrita – encontrei centenas de casos em linguagem jornalística brasileira, o que não é de espantar, claro.
Tal forma parece fundir duas estruturas legítimas. Veja:
(a) Não entendi por que ele faltou à aula. (a locução adverbial «por que» introduz oração subordinada interrogativa) + (b) Não entendi o porquê de ele faltar à aula. (o porquê é um substantivo que exige complemento iniciado pela preposição de)
O resultado? Cruzamento de (b) com (a):
– Não entendi o porquê ele faltou à aula.
Aqui «o porquê» entra sem a preposição que normalmente o acompanharia (de), herdando a estrutura direta do «por que» interrogativo.
Um caso clássico de braquilogia por fusão de estruturas.
É como se o falante dissesse, de forma condensada:
«Não entendi o porquê (o motivo) de ele faltar» + «Não entendi por que ele faltou» = «Não entendi o porquê ele faltou.»
Repito: do ponto de vista da norma culta, essa construção é considerada inadequada, por não estar presente nessa norma – pode ser que um dia faça parte dela ou nunca dela faça parte.
Mas, do ponto de vista do funcionamento estrutural da língua, trata-se duma forma de síntese comunicativa eficiente – uma estratégia que revela a capacidade potencial de processar linguisticamente o que se deseja comunicar. Tais construções são frutos da criatividade sintática do uso real da língua, em que a braquilogia/contaminação atua como engrenagem de economia, fluidez e sentido.
Alguns vão pôr na conta da hipercorreção... porque dá menos trabalho. Outros vão dizer que é coisa de analfabeto... O fato é que a língua está aí. Se é modismo ou não, se veio para ficar ou não, só o futuro dirá.
N. E.: A imagem é mesma a que acompanha o original.
Reflexão publicada em 30 de junho no mural que o autor mantém no Facebook.