«(...) Tenho a convicção de que a maioria das pessoas letradas são plenamente conscientes de que a linguagem jornalística brasileira é eivada de desvios de ortografia, de formação de palavras, de estruturação sintática, de regência, de concordância, de crase, etc., com implicações no sentido do texto. (...)»
Se fôssemos acreditar nos linguistas que insistem em dizer que a linguagem jornalística brasileira é fonte da verdadeira norma culta, teríamos de abonar certas construções linguísticas rechaçadas por eles mesmos.
Percebe o contrassenso?
Abordarei essa contradição mais à frente, ainda neste texto. Sei que é antipático, mas não existe busca pela verdade sem algum grau de conflito e exposição de ideias altamente contestáveis.
Antes, porém, um passo atrás, pois é necessário identificar (sem incorrer na falácia ad hominem) certos linguistas brasileiros especializados no tema da norma que, explicitamente, abonam a linguagem jornalística como fonte da norma culta "real":
Ataliba de Castilho
Mário Perini
Marcos Bagno
Carlos Alberto Faraco
Francisco Eduardo Vieira
Esses linguistas realmente acreditam e defendem os textos jornalísticos como base daquilo que consideram "norma culta".
Não obstante, tenho a convicção de que a maioria das pessoas letradas são plenamente conscientes de que a linguagem jornalística brasileira é eivada de desvios de ortografia, de formação de palavras, de estruturação sintática, de regência, de concordância, de crase, etc., com implicações no sentido do texto. Isso se vê ao sol do meio-dia, todos os dias.
Pois é... Sabemos disso. Então, será que esses estudiosos também não sabem?
É difícil dizer que não sabem; mas, ainda assim, subscrevem a nociva ideia de que a linguagem jornalística brasileira é, de fato, produto de cultura elevada, de norma culta, de escrita de qualidade modelar, de referência a ser seguida.
Como? Por quê? Boas perguntas.
O fato é que, embora creiam nisso, eles mesmos – quais cientistas da linguagem –NÃO estabelecem rigorosos critérios científicos delimitadores 1) do que é um texto realmente bem escrito, 2) de quais são as características que elevam um texto a uma qualidade distinta dos demais, 3) de quais gêneros textuais devem ser levados em conta para a extração dos usos linguísticos, 4) de quais fontes jornalísticas se devem extrair os usos que comporão a norma, 5) de quem escreve, etc.
Sem essas definições e delimitações, a norma extraída da linguagem jornalística vira tudo um grande saco de gatos, porque "Chegou os convidados" e "Ela está meia chateada" passam a figurar no rol de linguagem culta escrita, segundo defende (sem dados robustos da sincronia e sem fundamentos) o linguista Marcos Bagno, por exemplo.
Na boa, como acreditar que a linguagem jornalística é realmente fonte da norma culta, se todos os dias percebemos quão flagrantemente mal escrevem a toque de caixa os nossos jornalistas, muitos deles redatores não experimentados ou ruins mesmo?
É de pensar, não?
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Agora, sim. Depois desse passo atrás, voltemos à vaca fria...
Partamos do princípio de que a linguagem jornalística brasileira é efetivamente fonte da norma culta, tudo bem? Assim sendo, teríamos de abonar estas construções linguísticas aqui, por exemplo:
1a) «... na unidade do Leblon, HAVIAM muitas pessoas na fila esperando atendimento...»
Fonte: Extra, 27/01/2019
2a) «Além disso, é NECESSÁRIO a comprovação de nível superior.»
Fonte: Correio Braziliense, 29/01/2015
3a) "O policial militar, que estava no local, INTERVIU no caso...»
Fonte: Globo, 17/11/2016
Tudo isso à luz do dia, meus amigos.
Bem... Todas as pessoas que passaram por boas escolas e/ou que têm alto grau de literacia sabem que, segundo a norma-padrão tradicional, as frases deveriam estar assim escritas:
1b) «... na unidade do Leblon, HAVIA muitas pessoas na fila esperando atendimento...»
No singular, pois o verbo haver, com o sentido de existir, é impessoal, não tem sujeito, de modo que fica obrigatoriamente na 3ª pessoa do singular.
2b) «Além disso, é NECESSÁRIA a comprovação de nível superior.»
Em construções com ser + adjetivo/particípio, se o sujeito vier determinado por um artigo definido, como é o caso («a comprovação de nível superior»), deve o adjetivo/particípio concordar em gênero e número com o sujeito. Por isso, «é necessáriA», pois «a comprovação... é necessária». Concordância nominal básica.
3b) «O policial militar, que estava no local, INTERVEIO no caso...»
O verbo intervir é derivado do verbo vir, logo sua conjugação é igual à dele: «eu vim», «tu vieste», «ele VEIO», «nós viemos», «vós viestes», «eles vieram»... Logo, «eu intervim», «tu intervieste», «ele INTERVEIO», «nós interviemos», «vós interviestes», «eles intervieram».
Em linguagem jornalística brasileira contemporânea, as construções das frases 1a, 2a, 3a – todas fora da norma culta – aparecem frequentemente!
Diante disso, o que fazer: aceitar, automaticamente, esses usos desviantes encontrados na linguagem jornalística como "norma culta" ou estabelecer critérios rigorosos para balizar a filtragem desses usos?
Bem, segundo os linguistas brasileiros que, sem rigorosas demarcações, acreditam aprioristicamente ser a linguagem jornalística fonte da norma culta, só nos restaria aceitar as frases 1a, 2a, 3a.
Mas adivinhe e pasme... Nem eles as aceitam, com exceção da frase 2a, arbitrariamente acolhida por Faraco e Vieira, embora absolutamente nenhum gramático normativo da segunda metade do século XX para cá (nem o mais radical gramático descritivo) concorde com eles, abonando essa concordância.
– Pestana, mas como se comprova que esses usos linguísticos 1a, 2a, 3a já aparecem de montão na imprensa brasileira?
O site Corpus do Português responde a isso com uma quantidade gigantesca de dados em linguagem jornalística brasileira (de 2012 a 2019)*. Vejamos.
I) HAVIAM muitas pessoas no evento.
Investiguei as seguintes flexões no plural do verbo impessoal haver (com o sentido de «existir»), usando os seguintes códigos de busca: houveram *s, haviam *s, haverão *s, haveriam *s, hajam *s, houvessem *s, houverem *s. Esse asterisco atua como substituto de uma palavra e o s marca o plural dessa palavra, gerando a busca por frases como a que ilustra 1a.
Resultado:
houveram: 406 ocorrências
haviam: 1.329 ocorrências
haverão: 221 ocorrências
haveriam: 144 ocorrências
hajam: 166 ocorrências
houvessem: 160 ocorrências
houverem: 79 ocorrências
haverem: 35 ocorrências
Total: 2.540 ocorrências.
◊ Fica a questão: como considerar ERRO um uso linguístico que aparece milhares de vezes, de maneira sistemática na linguagem jornalística, tratada como fonte da norma culta pelos linguistas brasileiros supracitados?
II) Já é NECESSÁRIO a mudança de planos?
Investiguei esse tópico usando os seguintes códigos de busca abaixo.
Resultado:
SER necessário a NOUN: 495 ocorrências
SER obrigatório a NOUN: 62 ocorrências
Total: 556 ocorrências.
◊ Fica a questão: como considerar ERRO um uso linguístico que aparece centenas de vezes, de maneira sistemática na linguagem jornalística, tratada como fonte da norma culta pelos linguistas brasileiros supracitados?
III) O advogado INTERVIU naquela discussão.
Investiguei as seguintes formas verbais [incorretas] de intervir: "interviu", "interviram", "intervisse", "intervirem".
"interviu": 307 ocorrências
"interviram": 113 ocorrências
"intervisse": 25 ocorrências
"intervirem": 68 ocorrências
Total: 513 ocorrências.
◊ Fica a questão: como considerar ERRO um uso linguístico que aparece centenas de vezes, de maneira sistemática na linguagem jornalística, tratada como fonte da norma culta pelos linguistas brasileiros supracitados?
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Pelo que você viu, cada enxadada, uma minhoca. E foram investigados só três usos linguísticos.
Você realmente acha que a linguagem jornalística pode ser tomada como fonte de norma CULTA, como modelo de exemplaridade idiomática, como alvo a ser desejado no que respeita à qualidade escrita?
É preciso dar uns bons passos atrás...
Afinal, sem uma rigorosa demarcação do que seja realmente a NORMA CULTA (com letras maiúsculas), terá de ser aceita qualquer construção gramatical fora da norma-padrão, cujos exemplos são diariamente encontrados aos borbotões nos jornais e revistas brasileiras.
Rebaixar a norma culta a uma linguagem jornalística chã, rasteira, inexpressiva – sem rigorosos critérios e pressupostos – foi um dos maiores erros de boa parte dos influentes linguistas contemporâneos. E eles seguem acreditando nisso, desde 1985, quando Mário Perini decidiu escantear a linguagem literária como fonte e forja primacial da verdadeira norma culta, como defendia o linguista romeno Eugenio Coseriu e, até onde sei, todos os filólogos anteriores à década de 1970 no Brasil.
Lamento dizer: sem rigorosos critérios de seleção de textos realmente bem escritos, defender a linguagem jornalística brasileira contemporânea como repositório confiável de uma norma verdadeiramente CULTA é uma ofensa à inteligência de qualquer um.
Será que admitirão isso? Não creio.
Enquanto nada muda no Brasil, a norma linguística de referência tem virado um grande saco de gatos, cada vez mais próxima da norma popular, sobretudo por causa da má qualidade de quem escreve no meio jornalístico.
* Numa investigação mais apurada neste corpus, sugiro ao leitor que, se desejar se embrenhar no site, faça o filtro das frases em modalidade falada das em modalidade escrita.
Texto publicado pelo gramático brasileiro Fernando Pestanano seu próprio mural de Facebook em 20 de fevereiro de 2025.