« (...) E você… [...] também considera a linguagem jornalística brasileira FONTE CONFIÁVEL e MODELAR do que é escrever bem? (---) »
Os estudantes e professores do ambiente acadêmico das Letras precisam começar a levantar honestas reflexões a respeito de algumas convicções vistas como verdades assentadas nas faculdades brasileiras.
Acompanhe o raciocínio.
1. O que é a “norma culta”, segundo reconhecidos linguistas brasileiros contemporâneos?
Dante Lucchesi: «… apresentamos para o conceito de norma culta o mesmo entendimento que norteou a constituição do corpus do Projeto NURC, ou seja, a norma culta compreenderia os modelos comuns à fala das pessoas possuidoras da cultura do tipo formalizado, isto é, a cultura sistematizada e difundida pelo sistema de educação formal» (p. 74). Esses indivíduos teriam de preencher os seguintes critérios: nascer e viver em ambiente urbano e «ter curso superior completo» (p. 73).
Marcos Bagno: «norma culta: conjunto formado pelas variedades urbanas de prestígio, faladas e escritas por cidadãs e cidadãos com vivência urbana e elevado grau de letramento (objetivamente quantificado pela posse de um diploma de curso superior)» (cap. 22).
Carlos Alberto Faraco: «… conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita” (p. 71), ou seja, são os usos correntes dos “falantes urbanos com escolaridade superior completa, em situações monitoradas» (p. 47).
Resumo da ópera: segundo os principais linguistas brasileiros contemporâneos especializados no tema da norma, a “norma culta” é um conjunto de fatos linguísticos em comum produzidos e compartilhados (na fala e na escrita formais) por uma comunidade de usuários cultos da língua, que são assim determinados por terem histórico/vivência urbana e um diploma de nível superior.
Uma reflexão: seriam esses critérios de “pessoa culta” bons critérios para definir o que é uma pessoa verdadeiramente culta na sociedade brasileira, a fim de seguramente afirmarmos que essas pessoas usam uma linguagem realmente culta (e mais: todo jornalista é uma pessoa culta)?
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2. A linguagem jornalística representa a “norma culta”, segundo reconhecidos linguistas brasileiros contemporâneos?
Mário Perini: «Sou de opinião de que os dados que fundamentarão a gramática devem ser retirados desse padrão técnico-jornalístico… uma descrição do português-padrão tal como se manifesta na literatura técnica e jornalística» (p. 87, 88).
Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira: «… os fatos gramaticais da escrita serão apresentados nesta gramática a partir da prosa acadêmica ou jornalística contemporânea…» (p. 34); «… a primeira escolha teórico-metodológica resulta do entendimento de que o domínio acadêmico e o jornalístico são instâncias bastante representativas da norma-padrão brasileira hoje» (p. 41).
Marcos Bagno: «… as citações que vamos fazer dos GTM (Gêneros Textuais Monitorados) serão colhidas da produção jornalística mais conceituada, da escrita ensaística e acadêmica, das obras de divulgação científica etc., pois é nessa produção que vamos encontrar um verdadeiro padrão de escrita mais monitorada que deve, ele sim, guiar a prática do ensino de leitura e produção de textos na escola” (cap. 11); «A língua escrita culta, que escolhemos investigar aqui, [é] a dos textos jornalísticos...» (cap. 20, tópico 20).
Resumo da ópera: segundo os principais linguistas brasileiros contemporâneos especializados no tema da norma, a linguagem jornalística é fonte da “norma culta” que eles consideram verdadeira.
Uma reflexão: o filólogo e gramático Evanildo Bechara, em seu texto "A língua de uso", faz um comentário interessantíssimo sobre a linguagem jornalística, a qual tem servido de suporte (corpus) para as novas gramáticas de linguistas brasileiros a partir da década de 1990 até agora. Diz Bechara:
«Ora, a linguagem jornalística desse período se tem esforçado por se APROXIMAR DA VARIEDADE COLOQUIAL e ESPONTÂNEA, de tal modo que seu corpus registra muitas vezes formas e construções que a mesma linguagem jornalística de 1900 a 1950 empregava de maneira diferente ou as evitava por coloquiais, ou até as tinham por contrárias à tradição escrita, literária ou não. (...) o levantamento de um corpus – ainda que variado e extenso nas suas fontes –, centrado nos últimos 50 anos, pode oferecer ao pesquisador uma imagem reduzida das reais potencialidades da moderna língua de uso escrita no Brasil. A esta redução temporal acresce a natureza especial do período escolhido como fonte de pesquisa, já que NAS ÚLTIMAS DÉCADAS AS FONTES QUE PRIVILEGIADAMENTE SE SELECIONARAM COMO FUNDAMENTAIS TOMARAM A DECISÃO DE APROXIMAR SEU MATERIAL DE LINGUAGEM – morfológico, sintático e léxico – DA VARIEDADE ESPONTÂNEA praticada pelos brasileiros escolarizados.» (p. 342, 343; grifos meus)
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3. Raciocínio lógico: se a verdadeira norma culta escrita é o reflexo dos usos linguísticos encontrados na linguagem jornalística, então podemos afirmar que as duas formas linguísticas abaixo já refletem a “norma culta”, certo?
Exemplo 1:
Foi rastreada no site corpusdoportugues.org/now (textos jornalísticos brasileiros de 2012 a 2019) a quantidade de ocorrências de uma forma derivada do verbo vir (a saber: intervir) dentro da norma-padrão tradicional (DNP) e fora da norma-padrão tradicional (FNP), nos seguintes tempos e modos: pretérito perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo e futuro do subjuntivo.
Veja os exemplos:
– A diplomacia interveio na situação, porque os advogados intervieram antes. (DNP)
– A diplomacia interviu na situação, porque os advogados interviram antes. (FNP)
– Se ele interviesse na situação, tudo seria diferente. (DNP)
– Se ele intervisse na situação, tudo seria diferente. (FNP)
– Quando eles intervierem na situação, tudo será diferente. (DNP)
– Quando eles intervirem na situação, tudo será diferente. (FNP)
Adivinha?!
Foram encontradas 1588 ocorrências DNP e 417 ocorrências FNP.
Logo, 26% estão FORA da norma-padrão.
Então, segundo a visão desses reconhecidos linguistas brasileiros, visto que a linguagem jornalística é uma fonte da norma culta, então já podemos usar as conjugações abaixo em nossos textos escritos cultos?
– A diplomacia interviu na situação, porque os advogados interviram antes.
– Se ele intervisse na situação, tudo seria diferente.
– Quando eles intervirem na situação, tudo será diferente.
Exemplo 2:
Foi rastreada no site corpusdoportugues.org/now (textos jornalísticos brasileiros de 2012 a 2019) a quantidade de ocorrências da regência do verbo assistir (com o sentido de «ver, presenciar») dentro da norma-padrão tradicional (DNP) e fora da norma-padrão tradicional (FNP):
– Assistimos a um bom filme na Netflix. (DNP)
– Assistimos um bom filme na Netflix. (FNP)
Adivinha?!
Foram encontradas 16 619 ocorrências DNP e 3741 ocorrências FNP.
Logo, 18% da regência direta estão FORA da norma-padrão.
Então, segundo a visão desses reconhecidos linguistas brasileiros, visto que a linguagem jornalística é uma fonte da norma culta, então já podemos usar a frase abaixo, certo?
– Assistimos um bom filme na Netflix.
O curioso é que os 18% de assistir FNP é uma porcentagem menor do que os 26% de intervir FNP, e muitos linguistas brasileiros abonam como culta, inclusive na escrita, essa regência verbal. Curioso, bem curioso, não?
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PERGUNTAS IMPORTANTES:
I. Quando se diz que a linguagem jornalística pode ser tomada como fonte, e repositório, e corpus da verdadeira “norma culta”, isso significa que quaisquer formas linguísticas desviantes da norma-padrão tradicional encontradas em abundância (!) nos textos jornalísticos já podem ser automaticamente consideradas próprias da norma culta escrita?
II. Se não, qual é o grau de porcentagem que determina se uma forma linguística desviante já pode ser considerada variante culta de uma forma culta já estabilizada na língua?
III. Se muitos linguistas já consideram “norma culta”, inclusive na escrita, a regência "Fulano assistiu o filme”, então o que falta para considerarem igualmente própria da “norma culta” a conjugação “interviu, interviram, intervissem”?
IV. Todo texto jornalístico é produto linguístico de cultura elevada – em outros termos: todo jornalista é modelo de exemplaridade idiomática?
V. E você… acha que esses linguistas estão certos em suas considerações e também considera a linguagem jornalística brasileira FONTE CONFIÁVEL e MODELAR do que é escrever bem?
Comente à vontade.
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Referências bibliográficas (em ordem de aparição no texto):
Lucchesi, D. e Lobo, T. (1988). Gramática e ideologia. Sitientibus, Feira de Santana (BA), 5, pp. 73-81.
Bagno, M. (2012). Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola.
Faraco, C. A. (2008). Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola.
Perini, M. (2007 [1985]). Para uma nova gramática do português. São Paulo: Ática.
Faraco, C. A. e Vieira, F. E. (2023). Gramática do português brasileiro escrito. São Paulo: Parábola.
Bagno, M. (2012). Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola.
Bechara, E. (2010). Estudo da língua portuguesa: textos de apoio. Brasília: FUNAG.
N. E. – Na imagem, banca de jornais e revistas da rodoviária de Brasília (fonte: "Jornais impressos: circulação despenca 16,1% em 2022...", Poder360, 31/01/2023)
Apontamento do gramático brasileiro Fernando Pestana, transcrito, com a devida vénia, do Facebook (no mural do autor), do dia 1 de outubro de 2024.