Complemento da resposta à pergunta do Snr. Francisco Aragão, tema Acordo Ortográfico.
Segundo o artigo 3.º do texto assinado, o último acordo ortográfico deveria, efectivamente/efetivamente, ter entrado em vigor em Janeiro de 1994...
Quando os assuntos ficam bloqueados, é costume dizer-se que não há `vontade política´. Ora talvez a causa do atraso não seja só esta.
a) Vontade política
Este último acordo já foi aprovado pelos Parlamentos de Portugal e do Brasil. E tem havido um interesse inegável, da parte dos linguistas/lingüistas dos dois países, em harmonizar as grafias da Língua.
Reparar, por exemplo, que a Norma Brasileira tem por base o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (1940), e que, em 1971 e 1973, foram, pelos dois países, feitas harmonizações importantes, com a supressão de acentos gráficos responsáveis por 70 por cento das divergências entre as duas ortografias oficiais (nos homógrafos e nos vocábulos derivados com o sufixo `-mente´ ou iniciado por z). Presentemente, se observarmos as duas Normas, verificamos, com agrado, que, não obstante as divergências, ainda há muitas bases que são comuns.
Talvez tivesse havido menor vontade política, sim, no atraso com que o Parlamento do Brasil aprovou o Novo Acordo Ortográfico (aprovação conseguida só há pouco tempo). A pergunta que se pode fazer é se, nesse facto/fato, não terá havido também culpas de Portugal...
b) Resistência à mudança
Depois de 1971/1973, e antecedendo o último acordo, foi feito um esforço apreciável para a uniformização das duas normas ortográficas, com o Projecto/Projeto de acordo, de Maio de 1986.
Uma das diferenças significativas entre as pronúncias dos dois países é o timbre nas palavras proparoxítonas (esdrúxulas) com tónica/tônica em e ou o, quando, em final de sílaba, são seguidas de m ou n (ex.: caso de tónica/tônica acima, de António/Antônio, de académico/acadêmico, etc.), timbre aberto em Portugal e fechado no Brasil. No Acordo de 1945 impunha-se o acento agudo, mas dizia-se: «nesse caso só serve para indicar a tonicidade», o que, legitimamente, não convenceu os utentes brasileiros. Outro problema que surge na acentuação das esdrúxulas é o caso das falsas esdrúxulas (ex.: água), que têm encontros vocálicos postónicos/postônicos, considerados ditongos crescentes. Muitos linguistas/lingüistas dizem que estes ditongos finais formam uma só sílaba; e fica a dúvida de ser preciso o acento. Uma solução encontrada para estes problemas foi eliminar o acento nas esdrúxulas (estes acentos só foram regulamentados na Língua pela reforma de 1911). A controvérsia sobre esta proposta foi, porém, enorme (o caso do `cágado sem acento´ ficou célebre...).
Uma outra simplificação importante do Projecto/Projeto de 1986 foi a feita nas regras do hífen, com muitas aglutinações; mas também houve sérias objecções/objeções (ex.: em «bemaventurado» argumentava-se com o possível retorno da grafia sobre a fonia). Igualmente, a supressão das consoantes mudas, há muito seguida no Brasil, não foi bem aceite/aceita em Portugal.
O último acordo ficou conhecido por Novo Acordo Ortográfico, ou Acordo de 1990, e foi assinado entre os países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Além de Portugal e do Brasil, teve já a aprovação final também de Cabo Verde.
Este acordo é bastante mais modesto do que o Projecto/Projeto anterior. Deixa praticamente intactas/intatas as regras dos acentos gráficos (algumas complicadas, nomeadamente na acentuação do i e do u), mas introduz simplificações nas regras do hífen (presentemente confusas e frequentemente/freqüentemente arbitrárias) e, principalmente, apresenta uma sistematização apreciável em todas as Bases, o que, só por isso, pode ser considerado meritório (ex.: a acentuação das paroxítonas no texto do Acordo de 1945 está dispersa por 9 Bases). Neste Acordo de 1990, os brasileiros fizeram algumas cedências importantes (ex.: eliminação dos acentos em terminações oo e eia, supressão completa do trema, etc.). No entanto, o Acordo de 1990 também foi sujeito a numerosas críticas em Portugal: `quanto à supressão das consoantes que são mudas nos dois países´ (ex.: «noturno, letivo, ação, ótimo, atuar», etc.); críticas `quanto ao uso das duplas grafias necessárias para conciliar as diferenças não uniformizáveis nesta versão´ (ex.: António/Antônio, bebé/bebê, etc.), o que, disse-se, anularia o objectivo/objetivo fundamental da uniformização (notar que o léxico está repleto de variantes gráficas sem vantagem semântica); e, até, críticas `quanto ao facto/fato de este Novo Acordo não fazer as alterações profundas e com visão de futuro que sempre são recomendáveis quando se alteram as regras gráficas da Língua´ (isto é, que o Novo Acordo era uma desilusão em relação ao Projecto/Projeto de 1986...).
A resistência à mudança, neste caso da ortografia, compreende-se por vários motivos: há pessoas que se lhe opõem por idiossincrasia, outras porque receiam depois não saber escrever, muitas porque as alterações na escrita envolvem problemas económicos importantes (novos investimentos em edições, renovação de bibliotecas, etc.). Pode-se lamentar, mas não é para admirar que no atraso da entrada em vigor deste acordo esteja envolvida, também, muita resistência passiva.
c) Vocabulário Comum
Uma Língua `comum na norma gráfica´ (embora subsistam sempre diferenças na prosódia, na semântica, na sintaxe, como é natural) só se pode obter quando houver um Vocabulário `Comum´, que inclua as grafias consideradas correctas/corretas para todos os povos da lusofonia. É, por exemplo, necessário que esse vocabulário tenha duplas entradas nos casos de dupla grafia (ex.: académico e acadêmico, facto e fato, dicção e dição, etc.), como em muitos casos já regista o excelente dicionário brasileiro Aurélio (ex.: contacto/contato, tecto/teto, etc.). Havendo acordo entre os linguistas/lingüistas, um Vocabulário Comum pode também uniformizar, na medida do possível, palavras com diferenças gráficas mínimas (ex.: escutismo/escotismo, comummente/comumente, etc.).
Ora o Vocabulário Comum deveria ter sido elaborado até 1 de Janeiro de 1993, conforme o artigo 2.º do Acordo. O facto/fato é que já estamos em 1998, e este vocabulário ainda não foi publicado.
Compreende-se que seja difícil conseguir um vocabulário tão ambicioso e aceita-se que a data estabelecida tenha sido irrealista. Mas já vão mais de sete anos depois da assinatura do Novo Acordo… Consta que está para sair um novo dicionário da Academia portuguesa. Seria simpático que a Academia informasse a `Ciberdúvidas´ sobre a natureza e o estado de adiantamento deste dicionário.
Pessoalmente, julgo que a falta de um Vocabulário Comum é o principal impedimento à entrada em vigor do Novo Acordo Ortográfico. Poderá não haver forças de bloqueio (como agora se diz) interessadas em que o Acordo fique para sempre na gaveta; mas este é bem o ponto nevrálgico, onde um menor interesse se torna mais determinante.
O problema no Ciberdúvidas
Na nova era da comunicação, o facto/fato de existirem diferentes grafias para a Língua levanta muitos problemas na Aldeia Global. Particularmente, no caso do Ciberdúvidas, dificulta muito o eficaz desempenho da sua missão. Quando em Portugal respondemos usando grafias como, por exemplo: perdoo, assembleia, tranquilo, etc., etc., estamos a confundir os nossos irmãos brasileiros, pois estes termos não estão assim dicionarizados no seu país, e, portanto, podem ser considerados errados. Com este procedimento, desejando esclarecer dúvidas, estamos a levantar outras também.
Uma solução para tentar resolver o problema no Ciberdúvidas é repetir o termo, quando a grafia em Portugal é diferente da do Brasil (ex.: acção/ação), mas isso não é nada fácil. Neste pequeno texto, e nos casos em que me lembrei de o fazer, foram feitas 36 repetições. Se o texto tivesse sido elaborado com base no Novo Acordo, cerca de metade destes casos teriam uma grafia comum (1% do total das palavras) e, nos restantes, qualquer das duas grafias seria correcta/correta no Acordo, sendo desnecessária a repetição.
Nota
Na pergunta que nos mandou, o Snr. Francisco Aragão escreveu `falando´ em vez de `faltando´. Lê-se: «O que está falando para que o último acordo ortográfico entre em vigor?».
Sublinho este facto/fato, não para acentuar o erro (vê-se bem que se trata daquelas distracções/distrações a que estamos todos sujeitos, no fluxo de pensamento criativo), mas para fazer as seguintes considerações:
1— O exemplo mostra a importância que tem o contexto para o significado duma palavra. Se analisarmos a frase, não encontramos erros ortográficos; mas, no seu conjunto, a pergunta (directa/direta), assim isolada, ficou sem o sentido que o consulente desejou dar-lhe. A palavra `falando´, naquele contexto, está, assim, despojada de significado, transformando-se numa gralha. Um computador com um programa avançado na língua portuguesa, que conseguisse associar todos os conceitos na frase, poderia ficar sem resposta nesta pergunta.
2— O cérebro humano, porém, mesmo sem ir ao pormenor de analisar a palavra `falando´ letra a letra (verificando, então, que falta simplesmente um t no meio, para que logo tudo passe a ter sentido), substitui automaticamente essa palavra por `faltando´, dada a similitude fónica/fônica; e a mensagem pretendida, embora errada na estrutura, consegue igualmente ser recebida sem qualquer dificuldade.
Tenho grande respeito e estima pelos vernaculistas, no seu esforço para manterem a pureza da Língua. A verdade é que este exemplo nos deixa algumas dúvidas sobre a importância das minudências gramaticais ou ortográficas na transmissão da ideia/idéia; e, frequentemente, torna-se, por exemplo, muito mais determinante, no contexto, uma simples inversão da ordem das palavras (ex.: escrever: `informo que´ ou `informo V. Ex.ª de que´, `comummente´ ou `comumente´ é muito pouco relevante na mensagem, ao passo que escrever `setenta anos´ não é o mesmo que escrever `anos setenta´...).
3— Vem também a propósito sublinhar que, quando acima disse que as grafias perdoo, assembleia, tranquilo estavam erradas para o Brasil, não pretendi significar que houvesse o risco de essas palavras não serem entendidas. Isso seria uma ofensa à inteligência dos brasileiros, que muito admiro. Pretendi unicamente traduzir a minha preocupação com os estudiosos da Língua e com as pessoas sujeitas a críticas intolerantes.