
A ação judicial que o Ministério Público Federal da Uberlândia levantou contra o Dicionário Houaiss, por considerar que a entrada para cigano contém menções xenófobas, tem pelo menos o mérito de nos levar à reflexão sobre o que é o trabalho do lexicógrafo e, por conseguinte, em que consiste a arte de construção de um dicionário. No caso em apreço, poderia (e deveria) a entrada para cigano deixar de refletir os usos culturais pejorativos que efetivamente têm lugar na comunicação?
«No dia em que registrar os valores depreciativos que certos vocábulos assumiram ao longo do tempo for considerado um crime, nossa língua — ou, melhor, nossa civilização — terá embarcado numa viagem sem volta para a noite escura da desmemória», escreve Cláudio Moreno, no Luis Nassif Online.
Vale a pena ver, por exemplo, o que consta do dicionário em linha Priberam:
«cigano
(talvez do francês antigo cigain, atualmente tsigane ou tzigane)
adj.
1. Relativo a ou próprio dos ciganos (ex. canto cigano). = ZÍNGARO
adj. s. m.
2. Diz-se de ou indivíduo pertencente aos ciganos, povo nómada, de origem asiática, que se espalhou pelo mundo. = MANUCHE, ZÍNGARO
3. [Informal] Que ou aquele leva vida errante.
4. [Informal] Que ou aquele tem arte e graça para captar as vontades.
5. [Pejorativo] Que ou quem age com astúcia para enganar ou burlar alguém. = BURLÃO, IMPOSTOR, TRAPACEIRO, VELHACO
6. [Pejorativo] Que ou aquele é excessivamente agarrado ao dinheiro. = AVARENTO, SOVINA»
Como temos tido oportunidade de salientar, particularmente em perguntas que nos são dirigidas por professores do ensino básico e secundário, mais importante do que tentar simplesmente classificar uma palavra quanto à sua categoria morfossintática é saber detetar a função e interpretar o papel da palavra na frase e no texto. Por exemplo, a conjunção porque pode atuar na relação causal não apenas entre proposições mas entre a força ilocutória que enforma uma proposição e outra proposição.