Nesta entrevista, publicada no semanário angolano Nova Gazeta de 10/102013, a linguista Amélia Mingas, professora da Faculdade de Letras Universidade Agostinho Neto, em Luanda, lamenta a «ínguas ddifíceis Nesta entrevista, conduzida pelo jornalista Edno Pimentel, ex-diretora executiva do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) defende uma «maior aposta» na criação de centros de estudo e investigação e a valorização dos pesquisadores das línguas em Angola. Ver, ainda, «Temos de fazer em Angola [com o português] o mesmo que o Brasil fez», na rubrica O Nosso Idioma, subtema O português em Angola.
« (...) As línguas africanas de Angola são a nossa garantia, enquanto homem e mulher, capazes de criar saber e cultura. (...)»
O que é hoje a Faculdade de Letras?
Acima de tudo, por ter vindo da extinção da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (FLCS/UAN), assumiu uma série de responsabilidades que nem sempre podem ser superadas devido à complexidade.
O que acontece é que não foi extinta a FLCS/UAN e criada condições para uma faculdade nova por excelência, com meios para ter outros professores, outra estrutura e outros funcionários que não os que já existiam. Com tudo isto, a pergunta que se põe é: “Por que foi extinta a FLCS/UAN?”
Se tivermos em causa as razões que levaram à sua extinção, poderemos dizer então que, se foi extinta por alguma razão, e quem provocou essa extinção saberá. Quer funcionários, quer docentes, quer estudantes foram apenas integrar as áreas específicas de formação. Isso levanta uma outra questão: “será que o problema ficou resolvido?”
Foi resolvido?
Se tivesse sido diagnosticada a doença da FLCS/UAN, poderia dizer que há tentativas. As pessoas estariam em condições para compreender a racionalidade da extinção. Se se vai extinguir algo para fazer diferença, é preciso que se criem condições, que tragam coisas novas. Não se pode construir um prédio com tijolos velhos. Os males que levaram à extinção deveriam deixar de existir, mas os problemas ainda existem e há dificuldades em ultrapassá-los. Este é um desafio que foi apresentado à nova direcção. O que levou à extinção da FLCS/UAN só a reitoria saberá explicar.
Que males eram esses?
Não sei… São vários e foram bem explorados no passado. A corrupção foi um deles. Por outro lado, uma formação que, em várias áreas, em termos de qualidade, podia ser contestada. Mas, acima de tudo, era o nível de corrupção que aqui existia. Nessa altura, não conhecia a FLCS/UAN, era professora do ISCED, de modo que casos concretos de corrupção hoje não existem, porque se existissem certamente haveria processos disciplinares e a sanção dessas pessoas. Nada disso existe na Faculdade de Letras (FL/UAN).
Quais são as maiores dificuldades que a FL enfrenta?
Falta-nos docentes. Temos seis áreas de formação – Línguas e Literaturas ligadas à Língua Portuguesa, Francesa, Inglesa e Angolanas, Filosofia e Secretariado – e uma das dificuldades é a de formadores mestres ou licenciados com experiência e conhecimento capazes de garantir uma qualidade de formação como nós, direcção da FL/UAN, achamos ser razoável. Para adaptar à nossa visão de formação, reformulámos todos os programas que existiam. À medida que implementamos outros, vemos a necessidade de reformular e voltar a pensar.
Que corpo docente tem?
Temos 87 professores, essencialmente licenciados, mas também temos bacharéis, mestres e doutores.
Porquê bacharéis?
Sim, no Secretariado, em que, até ao ano passado, só formámos bacharéis. Este ano, conseguimos abrir a licenciatura.
Isto não torna questionável a qualidade dos estudantes?
Não, porque não são todos. Há disciplinas específicas ligadas ao Secretariado e os professores que aparecem não têm o perfil exigido para assumir as disciplinas específicas deste curso.
Será por isso que muitos finalistas não têm orientadores do fim de curso?
Não no Secretariado, que até 2012 só formava bacharéis. O problema que se punha nos outros cursos é que houve um atraso muito grande dos estudantes finalistas da extinta FLCS/UAN, que ficavam três a quatro anos à espera para defender a tese de licenciatura. Os professores actuais têm a preocupação de não só dirigir os trabalhos dos alunos ligados à faculdade, mas também colmatar essa falta que existia na faculdade extinta.
Como está o Plano Nacional de Formação de Quadros?
O problema que havia na FLCS/UAN é que havia muitos professores que tinham apenas o ensino médio. Houve a preocupação de ao mesmo tempo que leccionavam fizessem a superação. Connosco estão alguns que já concluíram a licenciatura. Quando fomos nomeados, reunimos em conselho restrito e decidimos que estes professores que ainda não tinham concluído a licenciatura tinham um ano para defender. Os que cumpriram foram admitidos, os outros dispensados.
Tendo em conta algumas deficiências, organizámos a formação de mestrados em cooperação com universidades estrangeiras, como a Nova Lisboa e do Algarve, de Portugal, ‘Eduardo Mondlane’, de Moçambique, do Rio de Janeiro, Brasil, de Cabo-Verde, de São-Tomé e Príncipe e ‘Amílcar Cabral’, da Guiné-Bissau. Tudo isso porque achamos melhor formar os nossos estudantes de Línguas e Literaturas directamente com especialistas da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Neste momento, temos cinco mestrados abertos, Línguas e Literaturas em Língua portuguesa, Inglesa, Francesa, Angolanas e Filosofia. Não temos de Secretariado porque as licenciaturas começaram apenas no ano passado.
A FL/UAN não tem condições para importar professores para as licenciaturas para resolver esse défice?
Não há necessidade. Precisamos de docentes para os cursos de Inglês e Francês. Mas já temos contactos com a República Democrática do Congo (RDC), que já tem doutores nessas áreas e em Línguas Africanas. Na RDC, há doutores em Kikongo, Cokwe e Kipende, que, no fundo, é o nosso Kimbundu. Queremos privilegiar os países da região.
Língua difíceis
Tem havido interesse dos estudantes nas Letras?
Há, mas o problema está no incentivo que possam ter e a garantia de emprego, porque as pessoas se formam para trabalhar. Há mais facilidade na Linguística, porque pode ter ligação ao ensino das línguas portuguesa, francesa e inglesa. Já nas nossas línguas há muitas dificuldades, porque não há funcionalidade para as nossas línguas. Formamos os técnicos e não sabemos onde vão trabalhar.
Por isso, estamos a sensibilizar os responsáveis para verem que num país onde o português é a língua dominante para todos os contactos, em documentos oficiais e na função pública, é preciso que os dirigentes interajam com a população. Como poderá interagir, se a maioria do povo não domina o português? Se não domina tem de haver alguém que, pelo menos, transmita aquilo que ele pensa.
Isso tem desestimulado os candidatos a Letras?
Sim, inibe-os. E é pena, porque quanto menos estudantes e pessoas interessadas nas nossas línguas tivermos, mais estamos a pô-las em perigo. Por se manter apenas na oralidade é que muitas línguas estão a desaparecer. No Brasil, por exemplo, muitas línguas perderam-se, porque as pessoas foram morrendo.
Justifica-se o ensino das línguas nacionais?
As línguas africanas de Angola são a nossa garantia, enquanto homem e mulher, capazes de criar saber e cultura. Se perdermos essas línguas, seremos indignos delas, porque, através delas, a cultura angolana poderá ser conhecida, poderá aparecer e enriquecer o saber universal.
Corremos o risco de as perder?
Penso que não, espero que não e estou a batalhar por isso. Já começa a haver alguma preocupação dos dirigentes neste sentido, com a sua introdução no ensino. Poderá ficar melhor se houver apoio. Já há algumas escolas privadas que introduziram as línguas nacionais no ensino.
Que saídas profissionais há para essas línguas?
A Tradução, Interpretação e desenvolvimento das próprias línguas. O que mantém e garante alguma estabilidade da língua é a escrita. Se as nossas línguas se mantiverem apenas na oralidade, haverá uma tendência para serem superadas, porque existe na oralidade pela maioria do nosso povo, que, infelizmente, ainda tem uma percentagem elevada de analfabetos.
Os estudantes têm respondido às expectativas?
Têm. A FL/UAN é muito recente, mas no ISCED, onde iniciei com o professor Zavoni Ntondo o primeiro grupo de especialistas nessa área, é agradável ver que, depois desses anos todos, há muita gente interessada em estudar. Este ano, tive uma surpresa reconfortante, enquanto formadora e defensora das nossas línguas, porque os estudantes traduziram o Hino Nacional nas várias línguas.
Investigação pobre
Como está a área da investigação na FL/UAN?
É necessário que haja uma rubrica para apoiar a investigação, porque não há uma rubrica expressa para isso. A pesquisa é um trabalho longo que pode levar anos para se chegar a conclusões fiáveis. Os investigadores precisam de equipamentos, laboratórios e de instrumentos que garantam a fidelidade dos dados.
A FL/UAN tem muitos investigadores?
Não estamos ainda muito bem servidos, mas temos um número capaz de fazer este trabalho. No entanto, estamos muito ocupados a dar aulas durante muitas horas, para compensar e fazer face às dificuldades devido ao nível de vida que temos. O país, por incrível que pareça, aparece com o nível de vida mais elevado do mundo. É uma vergonha, dadas às deficiências que temos, falta de tanta coisa e, particularmente, de formadores com seguros.
Seria bom que houvesse centros onde esses pudessem dedicar-se à investigação e dar uma ou outra aula, mas, acima de tudo, se pudermos viver com o dinheiro pago pela investigação, estaríamos muito melhor.
A FL/UAN prevê a elaboração de livros de leitura para os estudantes das nossas línguas. Os estudantes de línguas angolanas precisam de ler, interpretar textos em línguas nacionais, analisar a presença de personagens, etc. Neste momento, está a fazer-se a transcrição dos textos pelos professores linguistas, a correcção ortográfica, a ordenação e ilustração dos textos e, depois, vão para a gráfica. Já sabemos que fora do âmbito escolar ninguém vai comprar, mas vão os nossos estudantes, por ser um elemento de trabalho para eles e para os professores, o que servirá de garantia para rentabilizar o investimento feito.
O orçamento da FL/UAN ajuda?
Não há muito. Não há dinheiro direcionado à pesquisa. Temos apoio dos petróleos. A UAN recebe e distribui às unidades orgânicas.
Sente-se realizada?
Sinto-me. Primeiro, porque gosto do trabalho e tenho andado à volta das línguas. Há muitos anos que me debruço sobre a língua portuguesa em Angola. O modo como conformamos o português à nossa realidade, a adaptação com as nossas línguas é muito reconfortante.
As Letras garantem sucesso financeiro?
Não. Em Angola, os linguistas só ganham espaço no Estado. Basta ver a diferença entre o que forma a universidade pública e o que forma a privada. As universidades privadas dão prioridade à Gestão de Empresas, Economia, Direito, Engenharia e até Francês e Inglês por causa do mercado e porque são línguas muito utilizadas na tradução, mas não estão preocupadas com as africanas. Quem pensar só no dinheiro, não deve seguir Letras. Tem de gostar da área. As empresas não estão interessadas num professor de Kimbundu ou de Linguística Bantu.
Que outros planos tem a FL/UAN para o próximo ano?
A partir de 2014, abriremos o doutoramento, porque se concluiu que os angolanos que fazem a sua formação no exterior, contam na percentagem de formados daquelas universidades. O que quer dizer que Angola não aparece com os quadros doutorados. Vamos apostar na investigação e na recolha de dados para reproduzir na editora que criámos e que servirá também para a reprodução de livros dos docentes e trabalhos dos estudantes.
Como vê o ensino hoje?
Houve melhorias. Inicialmente, havia uma preocupação muito mais forjada a partir da realidade e da experiência colonial, mas hoje há uma visão muito mais contextualizada não só no país, mas também no continente. O ensino melhorou e progrediu bastante.
O surgimento das várias universidades tem, por um lado, um aspecto positivo, na medida em que, essa multiplicação vai dar possibilidade de ‘peneirar’ os formandos. Mas temos o problema de interacção entre os professores. Os professores não se comunicam com os colegas de outras universidades, de outros países. Há poucos encontros e continuamos a trabalhar cada um no seu canto. E tudo isso dificulta a qualidade do ensino.
Apesar disso, a qualidade dos alunos está a mudar, e isso é sentido pelos professores que vêm de fora. Os nossos alunos interagem.
Vale a pena continuar a investir e tentar lutar pela qualidade na formação de quadros.
Cf. Kwadi: uma língua perdida de Angola com uma história para contar
Entrevista da linguista angolana Amélia Mingas («Quem pensa no dinheiro não deve seguir Letras [em Angola]») ao semanário luandense Nova Gazeta, de 10 de outubro de 2013. Manteve-se a norma ortográfica seguida ainda em Angola.