A Cimeira de Chefes de Estado e de Governo que marcou a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entidade reunindo Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe (e mais tarde Timor-Leste) teve lugar em 17 de Julho de 1996, em Lisboa e traduziu um propósito comum: projectar e consolidar, no plano externo, os especiais laços de amizade entre os países de língua portuguesa, dando a essas nações maior capacidade para defender os seus valores e interesses, calcados sobretudo na defesa da democracia, na promoção do desenvolvimento e na criação de um ambiente internacional mais equilibrado e pacífico.
A CPLP assume-se como um novo projecto político cujo fundamento é a Língua Portuguesa (Lusofonia), vínculo histórico e património comum dos Nove – que constituem um espaço geograficamente descontínuo, mas identificado pelo idioma comum.
Segundo o académico Filipe Zau, no seu artigo «O conceito de lusofonia e a concertação diplomática», publicado no Jornal de Angola, edição de 28 de Agosto de 2011, «fora de um quadro de eventual estratégia glotofágica da língua portuguesa, há a necessidade de se reconhecer a existência de outras culturas e de se estabelecer uma cooperação efectiva entre outras línguas de cultura como a própria língua oficial – a língua portuguesa. O bilinguismo terá, hoje, de se sobrepor a um passado de imposição monocultural e de tensão doutrinária assimilacionista.»
É ainda do mesmo artigo que retiramos que «a ‘lusofonia’ terá, actualmente, de ter algo mais. Terá de ter uma fundamentação epistemológica, que justifique o facto de toda a gente falar dela, sem, de facto, ninguém saber bem o que ela é....»
Mais tarde, em 2 de Março de 2018, saiu no referido diário estatal outra reflexão de Filipe Zau intitulada «Lusofonia ou Lusotopia? Escolho a Palopofonia», na qual diz que «... a imagem dos ‘descobrimentos’ está muito associada ao conceito de ‘lusofonia’. (...) a língua portuguesa é língua oficial e de escolaridade. Mas, tal facto, não justifica em África uma hipotética ‘Palopofonia’, se me permitem o neologismo, à volta da língua portuguesa, enquanto património da humanidade.»
Em face desta depreciação do conceito de Lusofonia pelo académico Filipe Zau, tenho para mim que Lusofonia é simplesmente um conceito operativo, tal como CPLP, se tivermos em conta a própria definição do Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, no seu número «2. Comunidade formada pelos países e povos que têm o português como língua materna ou oficial. Difusão da língua portuguesa no mundo.»
Quando Filipe Zau disserta sobre as quatro vertentes da nossa identidade histórica e cultural comum, faltou acrescentar a quinta, que, além de ser a mais problemática de todas, pelo menos em Angola, mas também em Moçambique, é aquela que mais marcou estes 42 anos de independência: a repetição histórica da Acumulação Primitiva do Capital.
Decorre deste retorno histórico que muitos dos cenários coloniais patentes na poesia da Sagrada Esperança de Agostinho Neto continuam ainda vigentes na era da independência. Portanto, mais do que analisar uma pretensa «tensão doutrinária assimilacionista», há que analisar a nossa realidade, e esclarecer até onde é que o simples conceito de Lusofonia é assim tão polémico ou prejudicial ao nosso desenvolvimento nacional ou à cooperação no seio da CPLP, do que a estratégia glotofágica de comunicação entre governantes e governados e respectivas políticas culturais (ou a ausência delas) na era pós-colonial.
A pretensão avançada por Filipe Zau da necessidade de se «estabelecer uma cooperação efectiva entre outras línguas de cultura» e de que «o bilinguismo terá, hoje, de se sobrepor a um passado de imposição monocultural e de tensão doutrinária assimilacionista», nunca terá respaldo prático no seio da CPLP, enquanto nós, angolanos, detentores dessas «outras línguas» e de outros modos de viver a cultura, não soubermos e formos capazes de promover essas mesmas línguas e as culturas que lhes estão subjacentes. Ou nós queremos que sejam os europeus e brasileiros a considerarem a nossa idiossincrasia cultural africana, quando nós não lhas mostramos, nem nos valorizamos enquanto povos bantu, desde que ficamos independentes? As nossas tradições ficaram ensombradas pela longa guerra e pelo longo estado de corrupção económica que afectou o país. Não valorizamos as línguas, nem fomos capazes de criar, como fez a RDC, ou a África do Sul, uma única língua verdadeiramente nacional que nos identificasse como africanos. Esta língua de unidade é a língua do ex-colonizador derrotado, mas que permanece culturalmente nas nossas almas.
Portanto, dizer como diz Filipe Zau que existe uma «estratégia glotofágica da língua portuguesa», que «ninguém sabe bem o que é a Lusofonia» e que «não se justifica em África uma hipotética «Palopofonia», é uma expressão que deprecia e rejeita a inevitabilidade histórica do idioma comum e da lusofonia, sendo que este termo «Lusofonia» possui uma função semiótica incontornável e é a mais adequada ao contexto dos povos da CPLP, muito mais sonante ao ouvido do que Palopofonia.
Caso contrário, porque é que Filipe Zau produz os seus artigos num português vernáculo, sem adorno de nenhuma língua bantu (como fez Viriato da Cruz na poesia) e, mais, porque é que se expressa ele mesmo quando fala em público num sotaque lisboeta? Não estarão estes artigos que ele produz em directa contradição com o que defende, quando diz que «O bilinguismo terá, hoje, de se sobrepor a um passado de imposição monocultural e de tensão doutrinária assimilacionista»?
Nuno Rogeiro defende que «(…) a Lusofonia é mais vasta do que os Estados da CPLP, e anterior aos mesmos. Dizer que nela o «português» aglutina não é conspiração «neocolonial».
Em 1965, dizia Amílcar Cabral, na Guiné: «Temos que ter um sentido real da nossa cultura. O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros; é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo.»
O escritor angolano Leonel Cosme pergunta: «como teria sido a independência de Angola, com as querelas do MPLA, UNITA e FNLA, sem a mediação da língua portuguesa e do que, ao viés dela, se movimentaram potências estranhas a Angola? O resultado que hoje podemos avaliar sem preconceitos etno-culturais teria sido melhor ou pior se o discurso de reconciliação e unidade fosse proferido em kimbundo, umbundo ou kikongo? Daqui poder-se concluir que a língua portuguesa, porque instrumental, tenha o estatuto de língua principal, que se fala, escreve e comunica com povos multilingues que nem o Atlântico separou, constituindo uma unidade política de que a CPLP, mais do que um paradigma, é um sintagma.» A justificar o emprego incontornável do termo «Lusofonia», o único que nos enquadra a todos nós, falantes da língua de Camões, nesta grande comunidade chamada CPLP.
[N.E. – O texto segue a ortografia de 1945.]
Artigo publicado no Jornal de Angola de 16/7/19.