A situação apresentada constitui uma construção marginal na língua portuguesa, que está, contudo, correta e que se encontra descrita.
Antes de mais, é importante verificar que a frase de Machado de Assis constitui um exemplo de uma construção designada união de orações, descrita por Barbosa e Raposo, que se caracteriza por «o verbo causativo ou de perceção forma[r] um núcleo verbal complexo com o verbo infinitivo» (Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1963). Esta construção é composta, deste modo, por uma única oração com características específicas que analisaremos de seguida.
A frase apresentada está relacionada com uma construção original que inclui uma oração subordinada completiva:
(1) «Vi que o João fechou o cofre.»
A frase (1) é composta por duas orações: a subordinante («Vi») e a subordinada («que o João fechou o cofre»), gerando cada uma as suas funções sintáticas específicas. Assim, a oração subordinante tem como sujeito a primeira pessoa do singular, ao passo que a oração subordinada tem como sujeito «o João». Quando estas orações se unem para formar uma só, os constituintes da oração subordinada original têm de se adaptar à natureza da nova oração, o que implica que o constituinte que era originalmente sujeito já não poderá continuar a desempenhar esta função, uma vez que numa mesma oração dois constituintes não podem desempenhar a mesma função sintática. A adaptação da frase leva a que, nos contextos em que o verbo da subordinada é transitivo, o constituinte que era sujeito passe a desempenhar a função de complemento indireto, como se observa na construção (2) (cf. ibidem, pp. 1962-1963):
(2) «Vi fechar o cofre ao João.»1
Ora, se o sintagma destacado for substituído por um pronome, este assumirá a forma dativa na união das orações, como se verifica em (3):
(3) «Vi-lhe fechar o cofre.» (cf. ibidem, pp.1964-1965).
Assim sendo, a justificação que o consulente apresenta está correta e descreve o fenómeno de forma similar ao que acabámos de fazer.
Disponha sempre!
1. Distinguimos aqui esta construção de uma semelhante que apresenta a elevação do sujeito a objeto direto, a qual é constituída por duas orações distintas. Esta distingue-se da construção da união de orações pelo facto de o sujeito (que foi elevado a complemento direto) ser pronominalizado pelo pronome acusativo: «Vi-o fechar o cofre.» (cf. ibidem, pp. 1957-1961 e 1964-1965).