A questão que coloca é bastante relevante, mas de resposta assaz difícil, pois, para ser cabalmente respondida, seria necessário produzir um tratado sobre norma, desvio e mudança linguística. Vou, no entanto, tentar responder de forma sucinta, e potencialmente discutível, dada a profunda sensibilidade da problemática envolvida.
Ao falarmos de desvio de linguagem, temos subjacente uma ideia tradicional de norma ou padrão, que pode ser interpretada como uma espécie de linha ou nível zero da linguagem, correspondendo a uma realização ideal, na qual se não cometem erros ou desvios, face àquilo que Bechara, na Moderna Gramática do Português, chama o saber idiomático de uma dada língua e que é composto pelo conjunto de regras dessa mesma língua, encaradas de uma forma abstracta, ou seja, potencial e não associada a nenhum texto em concreto.
É a partir deste nível zero que se definem os outros níveis da língua, aos quais pode ser atribuído um valor positivo, se corresponderem a realizações cuidadas ou literárias da língua, ou um valor negativo, se pensarmos em linguagem popular ou familiar. Em última análise, face à norma, estes diversos níveis podem ser considerados desvios de linguagem, pois, idealmente, existiria uma forma de comunicar que, sendo neutra — sem recurso a processos de expressão tradicionalmente associados aos níveis de língua mais elevados e sem outros modos de criatividade ling{#u|ü}ística característicos da linguagem popular ou familiar —, veicularia sempre o mesmo sentido e seria sempre realizada da mesma forma, independentemente dos falantes envolvidos.
Porém, uma língua viva é uma língua em mudança constante, numa adaptação dinâmica da norma ideal às realizações de um indivíduo ou de um grupo. Esse facto implica que, associados à norma, ocorram aspectos considerados equivalentes que ratificam, digamos assim, um conjunto de variantes, fazendo da norma, não uma linha uniforme, mas uma faixa que abranja um certo número de variações. Esta realidade, além de uma certa liberdade nas produções linguísticas, ou talvez por nos dar essa liberdade, continua a não ser estanque, deixando “morrer” um conjunto de práticas ao mesmo tempo que permite a introdução de outras novas, que, gradualmente, se vão impondo, tornando norma.
Tendo em conta o exposto, poderíamos dizer que, do ponto de vista normativo e assumindo como referência o nível padrão da língua, é considerada desvio de linguagem a realização que, num dado momento, se não enquadre nas possibilidades reconhecidas como correctas. Este processo é, sobretudo, controlado socialmente, havendo uma classe mais culta ou mais letrada que condiciona a aceitação de novas realizações.
Se considerarmos como mudança qualquer alteração sofrida pela língua entendida como entidade abstracta, serão consideradas desvios de linguagem todas as que, num momento específico, não forem reconhecidas como fazendo parte da faixa de realizações consideradas corre{#c|}tas, ou seja, da língua-padrão.
O problema continua por resolver face a mudanças que identificamos, que sabemos que existem, mas que ainda não aceitamos como corre{#c|}tas. E creio que é este o verdadeiro busílis da questão. As mudanças que fazem evoluir a língua começam por ser consideradas erros e, à medida que se vão impondo, acabam por ser aceites e por entrar na norma. E isto conduz-nos a uma pergunta que é o inverso da que coloca: Quando é que uma mudança linguística deixa de ser considerada, à luz da norma, um desvio de linguagem? Poderemos talvez dizer que isso acontece quando a classe culturalmente dominante integra essas mudanças, intuitivamente, no seu discurso.
Importa ainda referir que, com a evolução dos estudos linguísticos, ao conceito de norma ou padrão tal como foi apresentado neste texto, acrescem outros conceitos que ratificam e consideram apropriadas outras formas de expressão, ou normas específicas, que caracterizam determinadas comunidades ou regiões quando produzem textos, orais ou escritos, no espaço geográfico ou social, que lhes é próprio. Essas normas particulares, ou regionais, não anulam nem chocam com a norma-padrão, pois enquanto esta é, por exemplo, ensinada em toda a comunidade de falantes de uma dada língua, aquelas são admitidas no espaço em que são válidas, mas não são objecto de aprendizagem formal e, a serem ensinadas, são-no apenas no espaço que as caracteriza (ou que caracterizam…).
Em síntese, face à norma, qualquer variação linguística começa por ser um desvio de linguagem. O que acontece é que alguns desvios, por serem “cometidos” em obras literárias — logo, acima do nível zero, logo, considerados positivos —, são de imediato associados a um estilo próprio e, potencialmente, identificados como traço estilístico a respeitar e, até, a imitar. É como se fosse uma variação por via erudita, a par da variação comum que gradualmente se vai impondo qual variação por via popular…