Fazendo minhas as palavras de Edite Prada, consultora do Ciberdúvidas, nesta resposta que eu considero exemplar para uma melhor compreensão do tema em análise, «a questão que coloca é bastante relevante, mas de resposta assaz difícil, pois, para ser cabalmente respondida, seria necessário produzir um tratado sobre norma, desvio e mudança linguística». Por outro lado, José António Fernandes Camelo, neste artigo, dá-nos conta também de que «A questão da norma linguística associada à determinação do que deve ou não ser considerado erro é terreno movediço falho de um poder regulador».
Posto isto, não me atreverei a alongar-me demasiado sobre a temática em apreço, já que, como compreenderá o nosso consulente, não será este o local adequado para reflexões deste grau de profundidade. Assim, limitar-me-ei a tecer breves considerações sobre o tema em análise.
No fundo, falamos aqui de duas perspectivas diferentes sobre a língua: uma, a chamada normativa, que entende que «uma gramática que pretenda registar e analisar os factos da língua deve fundar-se num claro conceito de norma e de correcção idiomática» (Cintra e Cunha, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 5); outra, a chamada descritiva, que defende a ideia de que «(...) o desvio, embora sendo uma ruptura da norma (...), não é uma ruptura do código, mas todo o contrário disso, ele está previsto nas regras de manipulação desse código, porque o código linguístico é (...) aberto, dotado de produtividade: aliás, é da produtividade que decorrem os riscos das inovações positivas (acertos) e das inovações negativas (erros). Em definitivo, a língua é um código aberto e produtivo que se distingue pelo facto de, ao mesmo tempo que prevê a norma (que é opção grupal), prevê (...) a possibilidade de infracção à norma» (Edward Lopes, Fundamentos de Linguística Contemporânea, 18.ª ed., São Paulo, Cultrix, 2007, p. 70).
Luís Filipe Redes Palma Ramos, num artigo intitulado Desvio e erro, sintetiza, de forma bastante clara, esta diferença: «Muitos erros gramaticais não são mais do que isso. Nada têm a ver com o raciocínio que pode estar muito certo. Há erros que podem, contudo, obscurecer a compreensão do que se diz ou escreve. Outros erros gramaticais há que resultam de erros lógicos ou de conhecimento. Por isso, preferem os linguistas falar em desvio e não em erro. Joga-se nesta questão a diferença entre linguística e gramática normativa.»
Steven Pinker, no livro The Language Instinct (O Instinto da Linguagem, tradução brasileira de Cláudia Berliner, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2004) tece algumas considerações interessantes sobre esta questão, assinalando que «os desvios podem ser linguisticamente explicados, o que parece torná-los tão legítimos como as formas normalizadas». Porém, nesta espécie de "pescadinha-de-rabo-na-boca", regressamos aqui às reflexões de Luís Filipe Ramos: «Mas esse facto deve tornar-nos tolerantes ao ponto de admitir todos os desvios?»
João Andrade Peres e Telmo Móia, cautelosos, na introdução ao estudo Áreas Críticas da Língua Portuguesa, alertam: «Daqui não se infira, porém, que consideramos que não existe desvio ou erro linguístico, que as línguas são tão flexíveis, que tudo admitem nos diferentes planos em que se organizam» (Lisboa, Caminho, 1995).
Deste modo, para que possamos corporizar os tópicos elencados, atente-se nas seguintes frases exemplificativas:
1. «Amanhã, vou ao médico. Depois de ser consultada, venho trabalhar.»
2. «Haviam três cinemas na Avenida da Liberdade.»
3. «Tu viestes de casa?»
4. «Os que ele gosta mais são aqueles.»
5. «Está descansado, que a gente fazemos o que falta.»
Ora, olhando para estas cinco frases, reparamos que todas elas apresentam erros comuns, que resultam de tendências sentidas pelos falantes da língua portuguesa, que não impedem a compreensão da mensagem e que, portanto, poderão ser considerados desvios numa perspectiva, digamos, menos tradicional da análise linguística. Assim, em 1, surge uma confusão com o uso do verbo consultar, acabando por existir uma espécie de inversão da normalidade semântica, pois quem dá a consulta é, em princípio, o médico, e não o paciente; em 2, conjuga-se, de forma incorrecta, o verbo impessoal haver, que, no contexto em apreço, apenas na 3.ª pessoa do singular poderá ser conjugado; em 3, a 2.ª pessoa do singular confunde-se com a 2.ª do plural, numa formulação que começa a ser omnipresente no contexto da língua portuguesa; em 4, deparamo-nos com a transformação de um verbo que necessita de complemento preposicional num verbo transitivo; em 5, verificamos uma incompatibilidade entre o sujeito singular e uma forma verbal conjugada no plural.
Como se pode constatar, e indo ao encontro da reflexão de Steven Pinker, todas estas irregularidades podem ser linguisticamente explicadas, podendo, por isso, ser consideradas desvios.
No fim, a questão acaba por ser: desvio ou erro? Na resposta a esta questão, por cautela, parece-me que será avisado ter em conta o sensato remate de José António Fernandes Camelo no artigo já aqui citado: «descrever e explicar desvios padronizados ou padronizáveis (tarefa da linguística enquanto reflexão sistemática sobre os processos da língua) não implica, automática e acriticamente, que a norma-padrão os aceite e os integre, exactamente porque ninguém pode prever como é que a comunidade no seu todo irá reagir a esta ou àquela inovação.»