DÚVIDAS

«Ter mais que fazer» e «ter mais o que fazer»

Certa vez, Napoleão Mendes de Almeida, creio eu que no seu Dicionário de Questões Vernáculas, disse, do seu jeito prescritivista, que deveríamos ter bem clara a distinção entre «tenho que» e «tenho de». Segundo ele, frases como «ela afirmou que eu tinha que tomar mais cuidado» seriam mais bem formadas com o uso de «tenho de», ou seja, de forma correta escreveríamos e diríamos: «ela afirmou que eu tinha de tomar mais cuidado».

«Ter que» seria usado no sentido aqui discutido: «tenho mais que fazer».

Contudo, é fato que no Brasil quase todos dizem «tenho que fazer X» e, no caso de «tenho mais que fazer», — é o que me parece — dizem «tenho mais o que fazer».

No primeiro caso, acabamos, por coincidência ou não, convergindo no uso com o espanhol, idioma em que se diz «tengo que».

No entanto, no segundo, acabamos por criar algo próprio, ou seja, em vez de manter o «tenho mais que fazer», pusemos um o antes do que. (“Criando” porque me parece mais natural que a novidade seja nossa, já que em tanto no português europeu quanto no espanhol há a mesma forma, e a divergente é a construção brasileira.)

A pergunta é: como é que houve essa inovação no Brasil? Conseguem dar hipóteses? Terá sido uma questão fonética?

Resposta

Sobre a história dos juízos normativos à volta de «ter que», com valor modal, poderá consultar a resposta "Ter de vs. ter que".

Quanto a «ter mais o que fazer», que tradicionalmente não é aceite1, as fontes consultadas para elaboração desta resposta são omissas quanto à sua origem2.

No entanto, não é de excluir que a génese da construção em apreço se deva à analogia com orações interrogativas indiretas em que o pronome interrogativo que pode ser substituído por o que:

(1) Não sei mais que fazer.

(2) Não sei mais o que fazer.

Em (2), observa-se que é possível ocorrer o que ocorra em lugar de que interrogativo.

Sugere-se aqui, portanto, que «ter mais o que fazer», em vez de «ter mais que fazer», seja resultado da transposição da relação entre (1) e (2), levando a permutar que com «o que». Na origem da construção brasileira, estarão, portanto, factores de interpretação sintática e semântica.

 

1 Maria Helena de Moura Neves, no Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003, p. 745), observa o seguinte: «Considera-se tradicionalmente que é injustificável o uso de um pronome demonstrativo o após o muito ou o mais, como nestas ocorrências: ♦ Não vou segurar a vela de ninguém, tenho mais o  que fazer. [...] ♦ O tempo demorava  para  passar e, pior, não tinha muito o que fazer [...].»

2 Consultaram-se as seguintes obras: Celso Cunha e Lindley CintraNova Gramática do Português Contemporâneo (1984); Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa (2002); M. H. Moura Neves (op. cit.); Paul Teyssier, Manual de Língua  Portuguesa (Portugal-Brasil) (1989).

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