Utilizar a construção «ter que» em vez de «ter de» é, efectivamente, uma incorrecção muito vulgar. E de tanto se ouvir e ver escrita, pode acontecer até que alguém que domine a língua cometa essa incorrecção. Não foi o caso do consulente, que utilizou adequadamente a construção «ter de», já que quis dizer «vejo-me na obrigação de», «assumo o dever de».
No Ciberdúvidas há já várias respostas sobre este assunto [Os erros de Marcelo, Ainda os erros de Marcelo, Ter que e ter de, Ter que e ter de]. No entanto, como o consulente pretende um texto que afaste completamente as suas dúvidas, vou proceder a uma sistematização.
1. Ter de
Ter de é uma expressão utilizada quando se pretende dizer que se tem o desejo, a necessidade, a obrigação ou o dever em relação a uma qualquer acção: «tenho de me ir embora» (= sou obrigado a ir-me embora, devo ir-me embora, tenho necessidade de me ir embora), «ele tem de arrumar o quarto» (= ele deve arrumar, tem o dever de arrumar o quarto), «temos de nos ouvir uns aos outros» (= temos o dever ou a obrigação de nos ouvir).
Nesta situação, o verbo «ter» é um verbo auxiliar da conjugação perifrástica: auxiliar ter + preposição de + verbo no infinitivo. Assim, «ter de», por si só, significa «ter necessidade de», «precisar de», «ser obrigado a», «dever», designando, pois, a necessidade de praticar a acção expressa pelo verbo que se segue, que é o verbo principal.
2. Ter que
Nesta situação, o verbo «ter» não é um auxiliar; é um verbo com a plena significação de «possuir», «ser detentor de», «estar na posse de», «desfrutar», «usufruir», «poder dispor de».
Por exemplo, se alguém quiser dizer que «tem muito trabalho», poderá utilizar a expressão «que fazer» para substituir a palavra «trabalho»: «Tenho muito que fazer.» Do mesmo modo, se quiser dizer que tem uma série de histórias ou aventuras para nos contar, pode utilizar a expressão «que contar» para referir esse conjunto de relatos: «Ele viveu muito, tem muito que contar.» Se quiser, ainda, dizer que tem em casa muita matéria para estudar, assuntos sobre os quais se debruçar, poderá utilizar a expressão «que estudar»: «Tenho tanto que estudar!» E também podem surgir frases sem esse antecedente, subentendendo-se «coisas», «alguma coisa», «algo» (na negativa, «nada») a que o relativo se refira: «ele não tem que fazer» (= não tem coisas que fazer, não tem nada que fazer), «ele não tem que comer» (= não tem nada que comer), «ele não vai ter que dizer» (= não vai ter nada que dizer).
Por outro lado, esses sintagmas «que fazer», «que contar», «que estudar», «que comer», «que dizer» assumem, pois, força substantiva, como se pudessem ser substituídos por «trabalho» ou «afazeres», «relatos», «estudo», «comida», «palavras», etc.: «ele tem que fazer» = ele tem trabalho, tem afazeres; «ele tem que comer» = ele tem comida; «ele não tem que dizer» = ele não tem palavras. E entre o verbo «ter» e o pronome relativo «que» poderá ser colocado um indefinido (tanto, muito, pouco).
3. Ter de distingue-se, pois, de ter que, porque no primeiro caso está presente a ideia da obrigação, da necessidade, do dever, enquanto no segundo está presente a de dar uma informação sobre o que o emissor possui ou tem em mãos.
Vou construir duas frases semelhantes, em que apenas substituo a preposição «de» pelo pronome relativo «que», de modo a mostrar como o sentido é diferente.
a) «Ele não vai sair, porque tem de estudar.» – Com esta construção pretende dizer-se que ele precisa de estudar, deve estudar, tem a obrigação ou a necessidade de estudar, está obrigado a estudar; e a necessidade de estudar impede-o de sair.
b) «Ele não vai sair, porque tem que estudar.» – Com esta construção pretende dizer-se que ele tem matéria para estudar. Não é do dever de estudar que se pretende falar, mas da quantidade de estudo que há para fazer. Não é o dever de estudar que o impede de sair, mas a quantidade desse estudo: não é o que «deve», aquilo de que «precisa», mas o que «tem», o que «possui».