A questão colocada está relacionada com o fenómeno de concordância verbal em orações que incluam um sujeito pronominal indeterminado, nomeadamente as orações de se impessoal. Neste caso, o verbo pode flexionar na 3.ª pessoa do singular, tendo se como sujeito. Não obstante, com verbos transitivos que têm como argumento interno um sintagma nominal, este constituinte pode realizar-se como sujeito gramatical, convertendo a oração numa passiva pronominal (ou passiva sintética)1. Isto significa que, de acordo com o que ficou dito, as frases (1) e (2) são ambas aceitáveis2:
(1) «Aqui compra-se os melhores fatos.»
(2) «Aqui compram-se os melhores fatos.»
Acresce, ainda, que quando o sintagma nominal da frase se encontra posicionado antes do verbo, este concorda com aquele (exceto se houver uma pausa entre este constituinte e o verbo):
(3) «Os melhores fatos compram-se aos domingos.»
(4) «*Os melhores fatos compra-se aos domingos.» vs. «Os melhores fatos, compra-se aos domingos.»
A frase apresentada pelo consulente inicia com uma oração de se impessoal («Não se pode ter muitos amigos»). Estas orações incluem um verbo que flexiona na terceira pessoa, não concordando com nenhum sintagma nominal da oração, pois o pronome se funciona como sujeito.
A segunda oração, uma coordenada copulativa («e mesmo os poucos amigos que se têm não se podem ter como nos apetecia»), integra uma oração subordinada adjetiva relativa e uma oração subordinada adverbial comparativa. Comecemos por analisar a oração relativa: «que se têm». Neste caso, o verbo ter não está a concordar com o pronome se porque apresenta uma flexão verbal de 3.ª pessoa do plural. Esta situação significa que o verbo assume o pronome relativo que (que tem como antecedente o sintagma «os poucos amigos») como sujeito gramatical, o que justifica a flexão na 3.ª pessoa do plural. Atentemos agora no verbo da oração subordinante: «se podem ter». A sua flexão na 3.ª pessoa do plural é sinal de que está a assumir como sujeito gramatical o constituinte «os poucos amigos que se podem ter», constituindo, portanto, uma passiva pronominal.
Deste modo, a estranheza que a frase apresentada pelo consulente implica pode estar relacionada com a oscilação entre a opção por uma frase de se impessoal ou por uma frase com passivas pronominais. Uma harmonização conducente à mesma escolha seria a opção pela passiva pronominal:
(5) ««Não se podem ter muitos amigos e mesmo os poucos amigos que se têm não se podem ter como nos apetecia».
Não obstante, a frase original é aceitável, porque embora se verifique a alteração do sujeito do verbo, as possibilidades enunciadas no início desta resposta permitem-no.
Veja-se, ainda, que a opção pelo se impessoal em toda a frase pode ser aceitável para alguns falantes:
(6) «Não se pode ter muitos amigos e mesmo os poucos amigos que se tem não se pode ter como nos apetecia».
Disponha sempre!
*assinala a inaceitabilidade da frase.
1. Para maior aprofundamento, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste -Gulbenkian, pp. 2477-2479.
2. Relativamente à questão da aceitabilidade destas construções, veja-se também esta resposta de Carlos Rocha.