Por enquanto, não é possível prever nem enquadrar numa regra a ortografia dos advérbios bem e mal como elementos de composição.
A hifenização deste casos depende muito do enraizamento que tenha a expressão formada por bem/mal + adjetivo, bem como da autonomia semântica ou morfossintática que tal expressão evidencie, de modo a distinguir-se da simples associação desses advérbios com adjetivos num frase (ou seja, por contraste com o sintagma que está na sua origem). O registo dicionarístico relaciona-se com estas condições (não tem que ver com o AO, pelo menos, não diretamente).
A respeito dos casos apresentados, observa-se o seguinte:
– Os vocabulários ortográficos atualizados não apresentam nem bem-vestido, nem malvestido.
– Os vocabulários ortográficos que aplicavam o anterior acordo (o de 1945) também não registam tais formas, mas, entre eles, o de Rebelo Gonçalves acolhe bem-trajado e bem-vestir (este, um substantivo), formas que poderão legitimar bem-vestido.
– Em três dicionários atualizados – Dicionário Houaiss (2009), o dicionário de Português da Porto Editora (em linha) e o da Priberam (em linha) –, só o último apresenta bem-vestido e malvestido. O primeiro dos dicionários mencionados só consigna malvestido, e o segundo, nenhuma das formas.
Em conclusão, tem toda a legitimidade escrever «bem vestido» e «mal vestido», sem hífen, até porque são expressões cujo significado parece decorrer da simples soma dos significados dos seus constituintes. Já a opção por bem-vestido e malvestido pode ser mais discutível, mas, dadas as oscilações gráficas dos compostos/sintagmas formados com bem e mal, há margem para as aceitar. Em meios profissionais em que se faz produção e edição de texto, esta questão terá de ser decidida por normas internas, capazes de suprir as oscilações e as divergências dos instrumentos normativos de aplicação geral. De qualquer modo, dada a dificuldade em distinguir claramente os contextos adequados às formas em questão e a falta de consenso (que é antiga) à volta da sua grafia, parece-me prudente escrevê-las sem hífen, com os advérbios separados do particípio passado adjetival: «bem vestido», «mal vestido».
Nota do consultor – Tendo pedido a outros consultores pareceres sobre o uso de bem e mal na grafia de compostos, transcrevo, com os meus agradecimentos, as seguintes conclusões:
«O Acordo Ortográfico (Base XV, 4.º) diz que, em sequências que sejam tomadas como compostos, os elementos adverbiais antepositivos mal e bem podem escrever-se, consoante os casos, com hífen ou aglutinados ao elemento tomado por base. Em sequências sintáticas em que mal- ou bem- antecedam um nome, verbo ou adjetivo que sirva de base (i.e., forme com estes advérbios um composto), a distribuição é a seguinte:
– antes de base iniciada por agá ou vogal, emprega-se sempre hífen em compostos que têm por primeiro elemento mal- ou bem- (e.g. bem-aventurado; mal-humorado);
– antes de base iniciada por consoante que não agá, mal- pode sempre aglutinar-se à base (e.g. malfalante, malcriado);
– antes de base iniciada por consoante que não agá, bem- aglutina-se à base quando esta não tem vida à parte [i.e., quando não existe como palavra independente (benfazejo)] ou quando há perda de noção de composicionalidade, i.e., quando se perde a identidade fonética ou semântica de um dos constituintes (e.g. bendito, Benvindo, em que o primeiro elemento é produzido como [bẽ], e não [bɐ̃j], independentemente de quanto a este caso poderem existir a par destas variantes em que, por o primeiro elemento ter produção plena, a sequência tomada por composto deve ser hifenizada, e.g. bem-dito, bem-vindo).
Note-se que esta formulação do AO90, como já acontecia no Acordo Ortográfico de 1945, toma como base a muito fugidia noção de composto, dependente de critérios semânticos para que não existem testes linguísticos objetivos que permitam distinguir em todos os contextos o que sejam sequências sintáticas livres do que sejam compostos. Assim, a escrita dos elementos de sequências sintáticas iniciadas com bem e mal, ora unidas por hífen, ora separadas por espaço, depende em boa medida do critério do próprio escrevente e do contexto em que as emprega. Quando este considere que está perante um composto, uma unidade indivisível de sentido, deve aplicar as regras acima, aglutinando ou justapondo os elementos constituintes; quando, pelo contrário, entenda que está perante uma sequência sintática livre, deve escrever os elementos destas sequências separadamente. O mesmo o fazem os lexicógrafos, ora registando, por poderem ser tomadas por composto, algumas destas sequências, ora não as registando, por não as encontrarem, segundo o seu entendimento, com esse valor.
Esta distribuição, antes também válida para outros advérbios que podem ser tomados como elementos antepositivos de compostos (e.g. quase-, não-), não é novidade do AO90, que, a bem da verdade, regularizou e clarificou bastante o emprego do hífen em português, sem contudo o fazer para todos os casos. As sequências com bem e mal são exemplo de contextos em que o AO90 manteve o insuficiente critério já antes existente.»