Começo por agradecer as palavras simpáticas com que se refere ao trabalho do Ciberdúvidas.
Quanto às suas observações, cito alguns gramáticos.
Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2001, 37.ª ed., diz na p. 587:
«A Gramática, alicerçada na tradição literária, ainda não se dispôs a fazer concessões a algumas tendências do falar de brasileiros cultos e não leva em conta as possibilidades estilísticas que os escritores conseguem extrair da colocação de pronomes átonos.»
Entre os exemplos com que ilustra o seu texto encontra-se o seguinte:
1 – «Querendo parecer originais, nos tornamos ridículos ou extravagantes» Marquês de Maricá (p. 588).
Na página 590, sobre a colocação do pronome em locuções verbais, descreve todas as possibilidades, uma das quais (2) não é sancionada pela norma em Portugal, dado não estar presente um atractor de próclise:
2 – «Eu lhe quero falar.»
3 – «Eu quero-lhe falar.»
4 – «Eu quero falar-lhe.»
Na mesma página, um pouco mais a baixo apresenta outro exemplo semelhante a 2:
2´ – «Eu lhe tenho falado.»
Em nota, nessa mesma página, acrescenta:
«Com mais frequência ocorre entre brasileiros, na linguagem falada ou escrita, o pronome átono proclítico ao verbo principal, sem hífen:
Eu quero lhe falar.
Eu estou lhe falando.
A Gramática clássica, com certo exagero, ainda não aceitou tal maneira de colocar o pronome átono, salvo se o infinitivo está precedido de preposição.»
E, na página 591, diz ainda:
«Nos princípios anteriormente comentados vimos certas tendências brasileiras que nem sempre a Gramática agasalha como dignas de imitação, presa que está a um critério de autoridade que a linguística moderna pede seja revisto.»
A consulente separa, parece-me, o uso proclítico que associa à fala e considera como desvio à norma, do uso enclítico, normativamente regulado e aceite. Porém, os gramáticos, nos exemplos que apresentam do uso do clítico, incluem a próclise com naturalidade. É o que surge na obra de Celso Luft, Moderna Gramática Brasileira, Editora Globo, 2002, com supervisão de Lya Luft, em nota da página 155:
5 – «… Eu me feri. Tu te feriste: Nós nos ferimos.»
Por seu lado, Miriam Margarida Grisolia e Renata Carone Sborgia, na obra Português sem Segredos, Madras Editora, 2003, registam os seguintes exemplos:
6 – «Obs. Embora os pronomes de tratamento refiram-se à segunda pessoa da comunicação…» (p. 118)
7 – «Ele nos fez calar a boca.» (p. 120)
8 – «Eu me lavo» (p. 122)
9 – «Ela se lava»
Como afirma Bechara em citações acima registadas, efectivamente, não há nas gramáticas normativas brasileiras que consultei referência clara à diferença de colocação dos clíticos entre Portugal e o Brasil. Essa referência surge com clareza e naturalidade em textos apresentados em congressos de linguística e publicados nas respectivas actas. Dir-me-á que se trata de liberdades de linguistas. Porém, a gramática normativa da autoria de um brasileiro e de um português, ambos ilustres, Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 1984, apresenta, na página 317, uma série de situações identificadas como específicas da colocação dos pronomes átonos no Brasil. Saliento que se trata de autores indiscutivelmente normativos, cujas acepções são extraídas, não da fala informal, mas da literatura.
«A colocação dos pronomes átonos no Brasil, principalmente no colóquio normal, difere da actual colocação portuguesa e encontra, em alguns casos, similar na língua medieval e clássica.
Podem considerar-se características do português do Brasil e, também, do português falado nas repúblicas africanas:
a) Possibilidade de se iniciarem frases com tais pronomes, especialmente com a forma me:
– Me desculpe se falei demais.
(Érico Veríssimo, A, II [são citadas duas obras: O Tempo e o Vento e O Arquipélago. Uma é identificada como A, a outra como A III. Não me é, pois, possível dizer com rigor de que obra foi extraída a citação], 487)
Me arrepio todo…
(Luandino Vieira, NM [= Nós, os do Makulusu, 3.ª edição, Sá da Costa, 1977], 138)
b) a preferência pela próclise nas orações absolutas, principais e coordenadas não iniciadas por palavra que exija ou aconselhe tal colocação:
– Se Vossa Reverendíssima me permite, eu me sento na rede.
(Josué Montello, TSL [= Os Tambores de São Luís, Rio de Janeiro, José Olympio/MEC, 1975], 176)
O Usineiro nos entregava o açúcar pelo preço do dia, pagava a comissão e armazenagem e nós especulávamos para as praças do Rio e São Paulo.
(José Lins da Rego, U [= Usina, 4.ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1956], 251)
– A sua prima Júlia, do Colungo, lhe mandou um cacho de bananas.
(Luandino Vieira, NM [= Nós, os do Makulusu, 3.ª edição, Sá da Costa, 1977], 54)
c) a próclise ao verbo principal nas locuções verbais:
Será que o pai não ia se dar ao respeito?
(Autran Dourado, TA [= Tempo de Amor [São Paulo] Difel, 1979], 68)»
Por seu lado, Paul Tessyer, no Manual de Língua Portuguesa, Coimbra Editora, tradução de Margarida Chorão Carvalho, depósito legal de 1989, diz acerca da colocação dos pronomes átonos no Brasil:
«O uso brasileiro é muito diferente do de Portugal. Mas demorou muito tempo a passar da língua falada para a língua escrita. Foi sobretudo depois do Modernismo (1922) que os escritores brasileiros o adoptaram sem reticências. […] A próclise é a tendência natural da língua […] A ênclise continua, no entanto, a ser praticada» p. 123
Não sou, reconheço, em abono da seriedade que se espera de um trabalho deste tipo, uma especialista em português do Brasil. Mas, quanto à colocação predominante do clítico na linguagem culta deste país, tenho apenas uma dúvida de algum modo associada ao que é dito na alínea b) por Cunha e Cintra. Aí, fala-se de uma tendência proclítica, ou seja, de colocação do pronome antes do verbo, em situações em que tal não é exigido pelo contexto.
Sempre assumi, e disso dou conta na resposta que refere, que, no Brasil, a próclise era também a norma nos casos em que o pronome se encontra numa oração subordinada ou em que o verbo é antecedido por uma palavra que exija próclise, como por exemplo não, também, etc. Se repararmos, é o que acontece no primeiro exemplo que ilustra a alínea b), acima. Devo reconhecer que, na altura em que dei a resposta em apreço, não consultei, e deveria, a já citada obra de Paul Teyssier. Se o tivesse feito, poderia ter lido na página 125:
«Observação n.º 2: Os escritores brasileiros praticam por vezes ênclises em casos em que essa posição seria totalmente impossível em Portugal, por exemplo, em proposições começadas por uma palavra interrogativa:
Onde levou-te o destino… (Vinicius de Morais, O. P. [= Obra Poética], p. 96)»
Com efeito, embora aqui e ali encontre frases que ilustram a possibilidade referida por Paul Teyssier, apenas neste autor a encontro descrita. Embora fale expressamente de interrogativas, vou assumir que esta possibilidade é viável com qualquer contexto que em Portugal exige próclise. Dou dois exemplos, um que tomo a liberdade de retirar do seu texto, outro que refiro acima como 6 e repito como 11:
10 – «dá a impressão de que no Brasil os gramáticos concordam com esta "regra geral" e que as escolas adotam-nas.»
11 – «Obs. Embora os pronomes de tratamento refiram-se à segunda pessoa da comunicação…» (p. 118)
Nestes dois exemplos estamos perante um pronome integrado numa oração subordinada. Em 11 é concessiva, em 10 é completiva do nome impressão, ainda que introduzida pela preposição de. Com efeito, o nome impressão da expressão «dá a impressão» é completado por duas completivas introduzidas por de que, as quais estão coordenadas uma à outra através da conjunção e, o que justifica a elipse da preposição na segunda oração. Em Portugal não é considerado corre{#c|}to proceder à ênclise nestas situações, no Brasil isso é possível, mas não consigo definir com que frequência (comum ou rara).
Em síntese, dos comentários que fiz em todos os exemplos na resposta que refere e que incluo a seguir, numerando-os, faria apenas as alterações que enumero abaixo (PE = português europeu; PB = português do Brasil).
12 – «E lhe darei toda a eternidade.» PB
13 – «E dar-lhe-ei toda a eternidade.» PE
14 – «E eu lhe darei toda a eternidade.» PB e PE (frase que pode ser considerada enfática, pelo uso do pronome pessoal sujeito)
15 – «O carroceiro partia para a capital e lhe prometera um emprego.» – PB (ou «prometera-lhe»? – PE).
16 – «Sua mãe não gostou do comentário, e o repreendeu.» – PB (ou «repreendeu-o»? – PE).»
17 – «Apenas pressentia-as, como flutuações sensitivas, as quais se tornavam cada vez mais densas e nítidas.»
Observações:
1.ª «pressentia-as»: forma inadequada nas duas variantes; o correcto é as pressentia; no Brasil porque não obedece à regra geral, em Portugal devido à presença do advérbio apenas.
2.ª «se tornavam» – forma correcta nas duas variantes; no Brasil porque obedece à regra geral, em Portugal devido à presença do pronome relativo as quais; «as quais tornavam-se»? – Forma inadequada em Portugal e aceite no Brasil.
18 – «A vida no vilarejo se lhe tornava cada vez mais chata.» – PB (ou «tornava-se-lhe»? – PE).
19 – «O modelo de humanidade, que se lhe apresentava em Pindorama.» – forma correcta nas duas variantes; no Brasil porque obedece à regra geral, em Portugal devido à presença do pronome relativo que.
20 – «Os olhos do livreiro arregalaram-se.» – PE (ou «se arregalaram»? – PB).
21 – «Teve vários amigos, mas, ao longo dos anos, um a um ia se distanciando, cada qual sendo substituído por outro que também acabava se distanciando.»
Observações:
1.ª «um a um iam se distanciando» – creio que é mais correcto usar o verbo no plural, pois o sujeito é vários amigos, sendo um a um o modo como o distanciamento ocorreu.
Quanto à posição do clítico, este exemplo é muito interessante, pois estamos perante uma locução verbal, que implica algumas variações na colocação do pronome. No Brasil, as hipóteses são três: antes de toda a expressão verbal, antes do verbo principal, como está, ou ligada, por ênclise, ao auxiliar. Em Portugal, neste exemplo concreto, a expressão um a um implica a vinda do pronome para o início da expressão verbal: um a um se iam distanciando.
No exemplo 13 colocaria PB, além de PE, uma vez que esta norma é também referida nos gramáticos e seguida pelos textos escritos que tenho consultado.
No exemplo 17, faria a alteração que incluo a sublinhado e negrito. Em relação exemplos 19 e 21 estamos perante situações em que o pronome é puxado para antes do verbo pela presença de um elemento atractor de próclise. Considero em todos os casos a próclise adequada, no Brasil por pertencer ao que, na altura, considerei a regra geral (não disponho de elementos que me permitam considerar de outra forma), e em Portugal graças à presença de contexto que justifique a próclise. No exemplo 21 incluiria a correcção que vai assinalada.
Termino lembrando que em Portugal se encontram muitas situações, mesmo em escritores, que contrariam aquilo que é preconizado como norma de colocação dos clíticos, a qual nunca foi tão linear em nenhum dos países como os gramáticos normativos gostariam.